Folha de S. Paulo


Kafka manda mensagem do lado de lá da muralha da Lava Jato

AFP
Brazilian President Dilma Rousseff and former Brazilian President (2003-2011) Luiz Inacio Lula Da Silva's campaign publicist Joao Santana (R) is arrested upon his arrival in Sao Paulo, Brazil o February 23, 2016. Political consultant Santana was being investigated by the Brazilian justice for receiving payments outside the country which could come from Brazilian state-run oil company Petrobras' briberies. AFP PHOTO / STR ORG XMIT: BRA101
O marqueteiro de Dilma Rousseff, João Santana, ao ser preso pela Lava Jato

Em seu depoimento à Justiça, na quinta-feira passada, João Santana disse que o Brasil tem uma Muralha da China. O publicitário fez até uma emenda no testemunho a Sergio Moro para acrescentar o paredão chinês. O muro, segundo ele, vai de Curitiba a Manaus, passa por Brasília, e é tão desmesurado que pode ser visto de satélites.

Sua argamassa é feita de "milhões de pessoas, de todas as classes e de dezenas de profissões". A construção colossal é "o centro de gravidade" da política: o caixa dois. Santana elegeu presidentes, governadores, prefeitos e parlamentares aos milhares graças à grana vinda dali. Sabe do que fala quando afirma que, por baixo, 98% das campanhas são ilegais.

Longamente meditada, a declaração em juízo atesta que todos os políticos eleitos –da situação e oposições, de executivos e legislativos– exercem um poder ilegítimo. Santana não provocou pasmo porque a verdade não alcança quem não pode ouvi-la. É o que diz o narrador de "Na Construção da Muralha da China".

Diante dos grandes do império, da turba reunida para assistir sua morte, o imperador do conto de Kafka chama um arauto. Sussurra-lhe uma mensagem destinada a um súdito ínfimo, morador dos confins inalcançáveis do império. Vigoroso e incansável, o arauto porta a revelação última do soberano. Mas é espessa a muralha de salas e gentes que o cerca.

Jamais as ultrapassará e, se conseguisse, de nada adiantaria; teria que descer escadas e percorrer pátios inumeráveis; e depois um segundo palácio, circundante; e mais cômodos e corredores intransponíveis; e outros palácios sem fim; e assim por milênios; e, se cruzasse o derradeiro portão, chegaria apenas à capital que ninguém nunca atravessou, muito menos com o recado de um morto.

Só dois poderosos comentaram a mensagem da Muralha. Dilma negou ter autorizado o caixa dois: "se houve pagamento, não foi com o meu consentimento". A gerentona, um mito criado pelo próprio Santana, pedalou pela Muralha mas não a viu.

Já Gilmar Mendes disse que a proibição do pagamento privado de políticos foi um "salto no escuro", contra o qual votou. Preocupa-o que "organizações criminosas atuem de maneira mais enfática" nas eleições de outubro. O juiz não esclareceu se considera Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez organizações criminosas, nem se elas corromperam com a ênfase apropriada.

O que terá dito o imperador ao mensageiro? Certamente não foi que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Dentro e fora da Muralha, seus súditos e adversários sabem disso. Aqui, como disse João Santana, é o poder econômico que manda.

São os donos do dinheiro que decidem em quem se pode votar. Só os partidos e candidatos que se comprometem com eles recebem doações. Foi esse o compromisso que Lula assumiu com sua Carta aos Brasileiros. Os pobres votaram nele e em Dilma –para gáudio das empreiteiras, e dos bancos que emprestaram a elas– e tornaram inexpugnável a Muralha que os aprisiona.

É por isso que o imperador talvez tenha dito ao arauto um trecho de "A recusa", outro conto de Kafka:

"Faz séculos que não se produz entre nós nenhuma mudança política partida dos próprios cidadãos. Os mandatários são substituídos uns pelos outros, até dinastias são depostas; a própria capital foi destruída, e fundada outra; mais tarde, essa última também foi destruída; e nada disso teve influência alguma na nossa pequena cidade".


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