Folha de S. Paulo


A guerra atropela o paraíso

Mireille e Paul se conheceram em Paris. Vieram do interior e fizeram carreira como bancários. São franceses de uma classe média que desfrutou do melhor dos mundos, o da Europa a partir do pós-guerra.

Nessas décadas de afluência, foram assalariados. Maio de 68 veio e passou. As lapelas dos paletós se alargaram e tornaram a afinar. Conservadores e socialistas se sucederam no Eliseu. E os dois lá, no batente. Ela, em serviços internos. Ele, no trato com a freguesia.

Mireille virou chefe de seção. Paul, gerente de uma agência do Crédit Agricole. Chefiava 15 pessoas. Decidia quem teria direito a empréstimos. No Natal, um açougueiro agradecido lhe deu uma perna de cordeiro. Aos poucos, porém, se encheram.

De chefiar, ela. De ter que optar entre clientes calorosos e a anônima avidez da banca, ele. Aproveitaram um passaralho e fizeram acordos de demissão voluntária. Juntaram indenizações e poupanças para comprar uma livraria & papelaria no Bulevar Saint Marcel, ao pé da estátua de Joana D'Arc.

Paul se levantava com o sol, saía do prédio na Bastilha, pegava o metrô e abria a butique. Precisava atender quem comprava o jornal antes de tomar o café no Baratin, logo em frente. Mireille o rendia na hora do almoço, e passavam a se revezar. Recomendavam lapiseiras e livros, comentavam as notícias do dia, puxavam assunto com crianças.

Não faziam questão que a lojinha estivesse cheia. Preferiam ficar de papo com os compradores a dar o troco para apressados em fila, como quando eram caixas de banco. Fizeram uma penca de amigos. Com a idade, cansaram.

Paul, de sair do edredom nas manhãs escuras do inverno. Mireille, da Paris inóspita do verão, quando gramava para ter tudo pronto na volta às aulas. Ambos, de ficarem de pé, atrás do balcão, até às 8 da noite. Aposentaram-se.

Venderam a birosca e compraram um apê na Copacabana da Riviera, a Promenade des Anglais, em Nice. Combinaram de ver os fogos de artifício no 14 de Julho. Como a mão fria que pousa no ombro nu, o telefone tocou. Era um amigo parisiense, dizendo que se sentia só. Mireille e Paul foram ao seu encontro. Por pura amizade, por ser quem são.

Dias depois, eles se diziam aliviados porque nenhum amigo morrera na carnificina. Ela de esquerda e ele de direita, estavam traumatizados. Mireille não entendia como algo tão pavoroso pudesse ter ocorrido "na nossa Promenade tão bela".

Nice mostrou os limites da investigação e da vigilância. É impossível rastrear um homem que não frequenta meios políticos ou religiosos. É inviável proteger todas as aglomerações –de um jogo de futebol a uma saída de escola. O assassino não arrumou uma Kalashnikov. Alugou um prosaico caminhão.

Não obstante, o Eliseu disse que incrementaria a investigação e a vigilância. Averiguação que implica no reforço do aparato policial. Prevenção a ser exercida pelos "patriotas", numa conclamação velada à bisbilhotice e à delação.

"Os americanos e os franceses foram matar muçulmanos na Síria e no Iraque, portanto, nós temos o direito de ir ao país deles", disse o tunisiano Taher Harzi, pai de dois membros do Estado Islâmico mortos em bombardeios ocidentais (Folha, 17/07).

Vigilância e investigação não trarão de volta a paz à bela Promenade de Mireille e Paul. O fim da guerra, talvez. Não houve mais atentados terroristas na Espanha desde que o país tirou suas tropas do Levante.


Endereço da página:

Links no texto: