Folha de S. Paulo


Quem barbeia o barbeiro

A renúncia de Eduardo Cunha à presidência da Câmara foi celebrada porque se crê que o seu substituto porá o parlamento numa boa trilha. Bertrand Russell, o matemático e filósofo, tenderia a discordar. Um bom presidente do Legislativo é um contrassenso.

Lá se vai mais de um século, ele expôs o Paradoxo de Russell, proposição demonstrativa de que a matemática não é lógica. Na sua ilustração leiga, feita pelo próprio filósofo, ele é conhecido como Paradoxo do Barbeiro.

Parta-se do pressuposto que, numa cidade, existam tão-somente dois conjuntos de homens. No primeiro ficam os que fazem a própria barba. No outro, os que são barbeados pelo barbeiro. Pois então: quem barbeia o barbeiro?

Há só duas respostas possíveis, mutuamente excludentes. Ou bem ele se barbeia; ou é barbeado pelo barbeiro. Como o barbeiro não pode pertencer aos dois conjuntos, mas está de fato em ambos, surge o paradoxo. O próprio pressuposto (não há um conjunto que contenha todos os conjuntos) perde validade.

Há uns 15 candidatos à poltrona de Cunha na eleição marcada, em princípio, para amanhã. Nove são alvo de procedimentos judiciais. Negociações e negociatas correm à solta. Envolvem temerosos e temerários; direita, centro e esquerda. Não há ideias em disputa, muito menos princípios. Por quê? Para obter pistas dos motivos é preciso voltar à eleição dos 513 deputados.

A Justiça Eleitoral diz que dez empresas fizeram doações para todos eles. Empreiteiras pagaram a campanha de 202. Os bancos, de 197. Frigoríficos, com a Friboi à frente, financiaram 162 dos eleitos. O agronegócio tem 118 deputados. As mineradoras, 85.

Por isso, no ano passado, a Câmara votou contra a proibição de empresas cacifarem campanhas. Por isso, em abril, viu-se a procissão de nulidades a enaltecer a tradição, a família e a propriedade –metáfora da classe que dá aos parlamentares o que comer, o que vestir, onde morar e, em troca, lhes diz em quais projetos votar.

O deputado típico é pago por companhias para entregar a elas obras, leis e nacos do Estado. A remuneração chega a ele por meio de mecanismos legais. O problema não é só a legislação, mas, como se diz nos "Grundrisse", o poder dissolvente do dinheiro. Quem fará amanhã a barba do barbeiro?

Como há no Congresso mais conjuntos do que no Paradoxo de Russell, são muitos os seus presidentes possíveis. Até os razoáveis. Afinal, o Senado, tão torpe quanto a Câmara, acabou proibindo o pagamento privado de campanhas. E a crise causou o inimaginável: a prisão, por mais de um ano, de um grande burguês, Marcelo Odebrecht.

Ainda assim, uma substituição substancial parece improvável –seja de Cunha por Gandhi, de Waldir Maranhão por Lênin, ou de Ulysses, que presidiu a Câmara nos anos 80, por um Ulysses redivivo. Não há, no Congresso cuja maioria come na mão da classe dominante, energia para mover o moinho da mudança.

Fora da sociedade, a potência parece igualmente em pane. Se a energia existe, ela não se constituiu até o fim, não foi canalizada. O que há são sinais de revolta. Que o próprio criador do Paradoxo de Russell sirva então de inspirador da rebeldia.

De inimigo do imperialismo britânico (foi preso seis meses por não se alistar na Primeira Guerra Mundial) à militância antirreligiosa (que o impediu de lecionar nos EUA), contra as armas nucleares e a guerra no Vietnã, o conde Russell esteve sempre na linha de frente.


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