Folha de S. Paulo


Pai, pedra e pão

É raro que, na correria dos anos e décadas, o rio do tempo se coagule no rodamoinho de um minuto. É preciso que amor e arte se enlacem para salvar o instante fugidio. Foi o que ocorreu com Franz Kafka na tarde de 13 de agosto de 1912, ao visitar um amigo.

Ele vê, sentada na sala, a moça loira que veste a blusa com displicência, tem o pescoço longo e o rosto ossudo. Ao se acercar, percebe que a "afasta um pouco dela mesma" –imagem kafkiana por excelência: ao entrarmos na órbita de um corpo, ele deixa de ser o que é.

O escritor registrou no seu diário, dias depois: "Ao me sentar, olhei-a detidamente pela primeira vez e, sentado, já tinha chegado a uma opinião inabalável". Entre puxar a cadeira e se acomodar, Kafka, aos 29 anos, se apaixonou por Felice Bauer, de 26.

Embora tenha pedido duas vezes à jovem que se casasse com ele, retirou a proposta em seguida. Nunca escreveu o nome dela, só as iniciais FB, mas sob o seu impacto enfileirou três obras-primas em seguida, "A Metamorfose", "O Foguista" e "América".

Isso lá com o tímido e travado Kafka. Mas, na vida de um povo, há momentos que condensem o passado, definam o presente e deflagrem o futuro? "O Pão e a Pedra", que a Companhia do Latão encena no Tusp, diz que sim. A peça parte da greve metalúrgica no ABC, em 1979, para pensar o impasse político de hoje.

Logo no início, um ator avisa que a montagem foi criada nos tumultuados primeiros meses do ano, e que Lula não será representado. Contudo, é à luz da atual caça ao ex-presidente e de suas contradições, que "O Pão e a Pedra" situa o líder da greve histórica.

A ausência de Lula do palco espelha o seu sumiço em 1979. A ditadura baixou o pau e, por dois dias, ele largou os operários ao léu. Reapareceu para, contra o ímpeto dos grevistas, fazer com que voltassem às fábricas e engolissem um acordo danoso. Em vez de pão, o pai deu pedra aos filhos famintos (Lucas; 11, 11).

O desamparo da massa de então é o de hoje, quando a liderança desaparece de novo. Com a dificuldade adicional de que o antes recalcado agora extravasa: a metalúrgica Joana (Helena Albergaria) se traveste porque as mulheres ganham menos, e ela cria o filho sozinha.

Será ela feminista? Uma transgênero rebelada contra o patriarcalismo? Complexidade análoga está presente em Fúria Santa (Rogério Bandeira), personagem que contrasta a crença no Pai Eterno de ontem (da teologia da libertação) com a de hoje (da teologia da prosperidade). A religião tanto ilumina como aliena.

"O Pão e a Pedra" põe para debater o chefete de seção, a jovem militante, o padre de periferia, o veterano desiludido, o fura-greve, o esquerdista dogmático, o dedo-duro, o filho abandonado e o pai ausente. Como eles não usam black-tie, a peça tem uma gravidade que destoa da cena atual, cheia de chanchadas recicladas e frivolidade de celebridades.

Nem por isso o espetáculo da Companhia do Latão deixa de ser espetáculo. A estética não se verga à política, nem as certezas da sociologia suplantam a perplexidade da trupe. A vivacidade de "O Pão e a Pedra" vem da arte.

Aí, de surpresa, Sol Faganello interpreta "Na Galeria", de Kafka. O seu brio é tal que parece que basta bradar "basta!" para que o tempo pare –e o pai, o pão e a pedra sejam superados. Como é assim só na arte, o espectador apoia o rosto no parapeito e, afundando como num sonho pesado, chora sem o saber.


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