Folha de S. Paulo


Reina a paz em Brasília

A direção do PT começou uma discussão que deverá ser encarniçada. O objetivo imediato é decidir o que fazer diante da situação aberta pela queda da presidente. Isso implica, porém, fazer um balanço da experiência do partido em 13 anos de poder, sobretudo dos últimos tempos.

Dada a natureza do governo interino, e da sem-cerimônia com que ele viola a vontade popular expressa nas urnas, é fácil denunciar a nova ordem. Difícil será dizer o que fazer se Dilma for reconduzida ao Planalto. A sua presidência tenderá a ruir de novo –caso volte a governar como fazia desde que foi eleita. Não basta dizer "Fora, Temer".

Nem isso Dilma disse, aliás, no seu discurso de despedida, apesar de a palavra de ordem sintetizar a posição do PT. Ela escorou a sua peroração com dois substantivos: injustiça e traição. Ambos são individualizantes e lamurientos.

Injustiça de fato houve. O "The New York Times", insuspeito de esquerdismo, expôs bem essa questão: frente às faltas administrativas que teriam sido cometidas pela presidente, a destituição é uma punição desproporcionalmente severa.

Com "traição" a coisa muda de figura. Dilma disse que foi vítima de deslealdade: Temer, Cunha e companhia bela a apunhalaram pelas costas. Também é fato, mas ele não explica muito. A direção do PT dirá que a iniciativa de trair a vontade dos eleitores partiu da própria presidente?

Vinte dias depois de vencer nas urnas, Dilma entregou a economia a um assessor de seu adversário no segundo turno. Encarregou Joaquim Levy de fazer o que Henrique Meirelles está pondo em prática agora.

Se "traição" for palavra demasiado forte para caracterizar a reviravolta, sempre é possível usar outra. Mas terá que ser "enganação", "fraude", "mentira" ou outra do mesmo campo semântico. O embuste teria sido cometido durante a campanha inteira, quando a candidata garantiu que não faria reajuste, não criaria impostos nem desempregaria.

O que não dará para fazer será sustentar que, nos primeiros 20 dias de governo, a situação econômica avinagrou a ponto de medidas drásticas (as pregadas pela oposição) se tornarem imperativas. Também será impossível jogar a culpa nas costas do marqueteiro. A responsabilidade final foi do PT e da sua candidata.

Atarantada pela Lava Jato, a direção do PT a princípio fingiu não ver a cambalhota de Dilma. Com o passar dos meses, e com o aprofundamento da crise, começou a criticar a política econômica. Aí foi a vez da irritadiça Dilma se fazer de surda, de recorrer à costumeira empáfia.

Em julho passado, quando a situação política se deteriorara de vez, ela deu uma entrevista à Folha. Depois dos "Ô, querida" de praxe, disse, de indicador erguido:

"Quem quer me tirar não é o PMDB. Nã-nã-nã-não! Eu acho que o PMDB é ótimo. Eu não vou cair. Eu não vou, eu não vou. Isso é moleza, é luta politica". A derrota foi tão funda que a existência mesma do PT está em xeque. A energia popular que provocou a construção do partido e o levou quatro vezes ao Planalto, no entanto, segue existindo. Até porque nenhum dos problemas estruturais da nação foi resolvido.

É a respeito de derrotas o último artigo de Rosa Luxemburgo, publicado dois dias antes de ser assassinada, em 1919. O seu título é "Reina a ordem em Berlim". Ele diz:

"Nós nos apoiamos nas derrotas e não podemos renunciar a nenhuma delas, pois de todas elas tiramos parte da nossa força e da nossa lucidez".


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