Folha de S. Paulo


Em Baden-Baden

Mais de um milhão de refugiados e migrantes entraram na Europa no ano passado. Foi a maior movimentação humana no continente desde a Segunda Guerra Mundial. É um problema maior, que vem se somar ao desemprego e à deterioração dos serviços públicos.

Em todos os países europeus, partidos de extrema-direita crescem. Agora foi a vez da Alemanha. Na noite do Réveillon, um bando de mil marmanjos atacou mulheres na frente da estação de trem da cidade de Colônia.
Mais de quinhentas delas prestaram queixa. Falaram de ofensas verbais, roubos, bolinação, agressões sexuais e dois estupros. Os que as atacavam estavam bêbados ou drogados. Eram de origem árabe e norte-africana.

Segundo a revista "Der Spiegel", um deles gritou aos poucos policiais que tentaram detê-los: "Sou sírio! Vocês têm que me tratar direito! Frau Merkel me convidou". A senhora em questão não os havia de fato convidado. Mas quase.

A chanceler alemã acabara de ser eleita "a pessoa" de 2015 pela "Time". Entre outros motivos, por ter defendido que a Europa recebesse de braços abertos refugiados sírios e de outros países em guerra.

Não mais. Ao perceber que a opinião pública estava em choque, Angela Merkel alterou o vocabulário. "Integração" deu lugar a "atos inaceitáveis". As regras de concessão de asilo, ela disse, devem ser endurecidas. Os agressores têm que ser expulsos.

Segundo o Ministério do Interior, 18 de 31 assaltantes haviam pedido asilo. No domingo, o ministro da Justiça falou em "ataque coordenado". Neo-nazistas fizeram uma manifestação em Colônia que acabou em pancadaria.

A hostilidade alemã em relação aos migrantes espelha um movimento geral na Europa. Não se trata apenas da postura de forças nacionalistas ou reacionárias, como os governos da Polônia ou da Hungria. Até a Suécia, liberal, reduziu drasticamente a entrada de migrantes sírios.

É um movimento que não se percebe nos sítios tradicionais do privilégio. É o caso de Baden-Baden, uma das capitais europeias do lazer da aristocracia burguesa da belle époque. Aqui, pouca coisa mudou.

O cassino onde Balzac e Dostoiévski deram vazão ao vício segue suntuoso. Só se aceita a entrada de quem está de gravata e paletó. As apostas nas mesas de pôquer são ilimitadas. O salão principal imita Versalhes.

O dinheiro trocou de mãos e a história voltou atrás. Como no início do século passado, bilionários russos afluem aos magotes. Há até um museu Fabergé para eles, mostrando os ovos esmaltados que Nicolau 2° dava à czarina na Páscoa. Eles lotam o café König.

A vida prossegue pacata em ruazinhas imaculadas e silenciosas. As vitrines expõem estolas de pele, joias, chapéus e poções que prometem beleza eterna. Não se veem negros ou árabes, sequer orientais, nas termas criadas por Caracala. A nudez geral é branca.

As únicas imagens dissonantes estão no Museu Frieder Burda. Ali, uma retrospetiva mostra as fotos colossais de Andreas Gursgy, o artista alemão que vem recriando as misérias da globalização. Em Baden-Baden, porém, mesmo a linguagem forte da arte autêntica é anestesiada pelo mundo.

Sai-se do museu para um jardim que parece cuidado com um cortador de cutículas. Os cavalinhos que levam crianças álacres pela alameda Lichtentaler quase fazem esquecer as que chegam à Europa em barcos capengas.


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