Folha de S. Paulo


Melancolia na laje à esquerda

Fala-se aos borbotões em "Retorno a Ítaca", filme convencional e meio claustrofóbico. Ele ressuscita o clichê do grupo de amigos que se reúnem para festejar, mas rememoram malogros e se afogam em rancor. Nada mais desanimador que um novo "Nós que Nos Amávamos Tanto". Para piorar, em Cuba.

Surpreendentemente, porém, o filme é tocante e faz pensar. Sobretudo os que acompanharam com simpatia (e críticas) a revolução cubana. Serve de elegia para o socialismo numa só ilha e tem algo a dizer sobre o Brasil dos dias que correm.

"Ítaca" se passa na laje de um predinho de Havana. Como a revolução, o imóvel e a cidade degringolaram. O filme começa de tarde, atravessa a madrugada e vai até a aurora. Os diálogos são cortantes e a câmera não larga o rosto e os gestos gastos de cinco amigos. Um deles, escritor frustrado, está de volta depois de anos de exílio.

O Ulisses sem aventuras é recebido na Ítaca caribenha por um pintor, uma médica, um chefete e um trabalhador manual. São cinquentões ressentidos que um dia se entusiasmaram com a revolução. Mas a União Soviética ruiu, os subsídios evaporaram e a pobreza digna virou miséria geral. A história acabou num beco.

A fauna humana da ilha lembra o Brasil. Bebe-se à beça; vai-se da piada à agressão e dela às lágrimas; os jovens querem ir para o exterior; o poder é impalpável; não há emprego dando sopa; a conversa sobre esportes é recorrente; a cerveja acabou. A laje em Havana prestaria bem para um churrasco na perifa de Mogi.

E há a política. "Retorno a Ítaca" se destina a um público vagamente progressista. O filme chegou a um Brasil no qual a esquerda se afunda de modo próprio, sem que possa sequer vituperar o imperialismo. Seja na tela, seja ao sair do cinema, o fracasso impera. O luto e a melancolia reinam.

É descabido comparar a revolução cubana, vencida pelo embargo americano e pelo stalinismo de Fidel Castro, com os 12 anos de petismo. Aqui não houve nem reforma. Mas a acídia da esquerda é semelhante. Restou o consolo dúbio da consciência crítica. Que nem ali nem aqui leva ninguém sozinho à liberdade.

Para quem tem ilusões no castrismo, o filme traz mais pás de cal. O stalinismo tropical foi pavoroso, generalizado. Não se tratava de vigiar oposicionistas armados, mas de delatar, espezinhar os fracos, inviabilizar a vida de gente pobre.

Ao contrário da revolução, a repressão continua. Na terça-feira passada, o sub-Castro de plantão prendeu 120 pessoas. Classificou-as de dissidentes na mesma semana em que autorizou os Estados Unidos a reabrir sua embaixada em Havana. O próprio "Retorno a Ítaca" foi proibido em Cuba.

A corrupção é um modo de vida. Não é força de expressão: os cinco personagens do filme vivem na ilegalidade. Do burocrata do regime ao trabalhador que recauchuta baterias, todos desviam, furtam, se prostituem.

Por fim, o fracasso da revolução corresponde ao retorno do obscurantismo religioso. Os jovens agnósticos que seguiam a razão e lutavam pela igualdade agora recorrem à macumba, e veem fantasmas no dia claro.

Não se rotule o diretor de "Ítaca", Laurent Cantet, de anticomunista ou esquemático. Ele dirigiu "Entre os Muros da Escola", filme inovador e complexo que ganhou a palma de ouro em Cannes. O seu corroteirista foi Leonardo Padura, o cubano que escreveu "O Homem que Amava os Cachorros".

O filme tem duas imagens marcantes. Uma flor mirrada brota de um cacto frágil, cultivado num vasinho. Ou seja, até na metáfora a resistência rebelde ficou kitsch. Já o mar de Havana, contemplado de longe, parece deslumbrante –e está tão fora de foco quanto o socialismo.

O poeta perguntaria: que importa a flor, a paisagem, a linha do horizonte, quando o que se vê da laje é o beco?


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