Folha de S. Paulo


Dante, 750

A presidente disse há dias que não se deve considerar Joaquim Levy "um Judas". A referência ao mau apóstolo comporta outra, indireta, ao pecado da traição, já que o ministro é acusado de trair aqueles que mais ajudaram Dilma, os seus eleitores. E a traição é o pecado mais grave, determinou há séculos o severo aniversariante.

Com alguma licença, se poderia tomar a referência a Judas como uma homenagem da presidente a Dante. Não há registro da data de nascimento do poeta. No "Paraíso", porém, ele diz que veio ao mundo sob o signo de Gêmeos, ou seja, entre meados de maio e junho. Como os "Salmos" estabeleceram que uma pessoa vive em média 70 anos, pelo verso inaugural da "Comédia" ("No meio do caminho desta vida") se infere que Dante teria 35 anos quando a escreveu.

Feitas as contas, chega-se a que Dante faz 750 anos por esses dias. Grande coisa, diz a luciferina leitora. Ela tem razão: nunca uma data redonda redundou numa coluna decente. Afora que ninguém lê a "Comédia". A leitora conhece a "Odisseia", assistiu a "Édipo", leu "Hamlet". De Dante, sabe só os tercetos que ele pregou na porta do Inferno (e Riccardo Humberto reproduz na ilustração desta página).

A "Comédia" é pasto privativo de dois rebanhos. Os eruditos, que se deliciam com o seu intrincado engenho, suas alegorias e anáforas, e há séculos atiram notas de rodapé uns nos outros. E a grei dos poetas, que padece da compulsão, plenamente compreensível, de glosá-la. É o caso de Milton, Byron, Eliot, Drummond. Ressalve-se Pedro 2º, que era doido por Dante e fez uma tradução bisonha do episódio de Francesca de Rímini.

Não se acuse os brasileiros de ignorância, ou não só eles. Na Europa é igual. O mero bicentenário da batalha de Waterloo, na semana que vem, fez bem mais barulho que as 750 primaveras dantescas. Os pérfidos belgas, fartos das piadas que os franceses contam a seu respeito, cunharam uma moeda comemorativa da derrota de Napoleão. Conhece-se o perfil austero de Dante, propagado pelo Renascimento. Sua obra, de orelhada.

Exceto na Itália. Não porque ele criou e consolidou a língua italiana. Nem só porque é ensinado nas escolas. Lá ele é amado. Na mesma época em que Boccaccio acrescentou ao título da "Comédia" o adjetivo "Divina", nasceu a tradição de apresentá-la e declamá-la. O sujeito sobe num púlpito e explica um Canto qualquer: personagens, fundamentos teológicos, figuras de linguagem. Em seguida, recita o Canto.

A performance, que tem o nome de lectura dantis, é formidável. (Algumas das leituras de Vittorio Gassman, o soberbo ator, estão na internet.) Para o 750º aniversário, Roberto Benigni, ator e diretor de "A Vida É Bela", percorreu a Itália comentando, recitando e comparando pecadores da "Comédia" a políticos da atualidade.

A primeira astronauta italiana, Samantha Cristoforetti, aproveitou que estava em órbita para recitar o início do "Paraíso". O papa, que é argentino, mas sabe trechos de cor da "Comédia", disse que Dante é um profeta e nos ajuda a atravessar a selva obscura da vida.

Benigni fez uma lectura dantis no Parlamento. Foi unanimemente aplaudido porque declamou o fim do "Paraíso". Não disse o Canto no qual Dante situa os corruptos: na quinta fossa do oitavo círculo do Inferno. Eles estão imersos em piche fervente e, ao levantar a cabeça, demônios lhes disparam flechas.

Piores que os corruptos são aqueles a quem Dilma se referiu. Dante reservou aos traidores o círculo infernal mais fundo, o nono, onde a luz não chega nunca. O Príncipe das Trevas em pessoa, com suas três cabeças, se ocupa deles. Com a boca do meio, Lúcifer tritura Judas. Com as dos lados, devora Brutus e Cássio, traidores de Cesar.

Seria preciso ir a Dante para ver onde está Joaquim Levy.


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