Folha de S. Paulo


Memórias de um herdeiro

Só depois de percorrer 562 das quase 700 páginas de "Vida de Cinema", Cacá Diegues finalmente dá uma definição sucinta de si mesmo: "um modestíssimo cineasta metido a falar sobre tudo". A avaliação serve para o seu prolixo livro de memórias, pródigo em opiniões a respeito de tudo.

Uma explicação para o opinionismo encontra-se na epígrafe de "Vida de Cinema". Diegues acredita, como Gilles Deleuze, que erramos quando acreditamos nos fatos, pois só há signos. E erramos de novo ao crermos na verdade, porque só há interpretações.

Com isso, ele se propõe a esclarecer o que pretendeu fazer e a justificar o que fez. O pressuposto é que muitos não entenderam, ou reagiram com má-fé, ao que ele produziu nos seus 74 anos de vida. A profusão de explicações, assim, é acompanhada por queixumes quanto aos mal-entendidos.

Postas essas restrições, "Vida de Cinema" é um livro sincero e revelador. O seu autor é um homem sério, líder do cinema novo, movimento de reviravolta estética que trouxe o modernismo para as telas, autor dos notáveis "Os Herdeiros" e "Bye Bye Brasil".

Ele tinha 23 anos, vinha de lançar o seu primeiro filme, "Ganga Zumba", no 31 de março de 1964. Culto e politizado, estava no centro da agitação da juventude e da intelectualidade cariocas. E diz com candura que não tinha a mínima ideia de que o golpe era iminente.

Diegues correu naquele dia para a sede da UNE, no Flamengo, e se tranquilizou. O auditório estava lotado e os oradores -líderes políticos, intelectuais de renome, militantes experientes, respeitados professores- todos garantiam que a situação se encontrava sob controle. Não houve exceção.

Pior, eles achavam que a tentativa de golpe era positiva: "a direita botara a cabeça para fora e agora iríamos cortá-la de vez". O editor Ênio Silveira disse que, com o apoio dos generais ao presidente, o socialismo estava ao alcance da mão. A plateia veio abaixo.

Leon Hirszman sugeriu que se preparassem para, já no dia seguinte, filmar a aurora da nova ordem. Dividiram as tarefas e Diegues voltou para casa, de ônibus. Havia poucos passageiros, todos em silêncio. "Meus pensamentos vagavam entre o anunciado futuro socialista e a estranheza pela facilidade da vitória", ele escreve.

Ao acordar na manhã seguinte, se deu conta de que o golpe triunfara. Seguiram-se dias de perplexidade e desorientação, acompanhados de uma vontade imensa de fazer algo, de tentativas tateantes que redundam em decepções.

Nada disso foi fortuito ou episódico. No âmbito do cinema novo e da intelectualidade de esquerda, a cada passo decisivo da história nacional repetem-se a ignorância e a eloquência oca. Atividade legal ou luta armada? Negociar com a ditadura? Aderir à Nova República?

Tome superficialidades, retórica

incandescente, abandono de princípios.

A ignorância quanto ao onde estamos, e ao que fazer, é tamanha que "Vida de Cinema" dá até medo. Não em relação ao passado, mas ao presente: podemos estar repetindo hoje o que foi feito ontem. A condescendência e o conformismo continuam à espreita.

O amargor que perpassa as memórias de Cacá Diegues é atenuado por vinhetas cálidas (de Nara Leão e Renata Almeida Magalhães), pela ira contra a injustiça de que foi vítima (seu ataque a Paulo Francis) e pelo retrato da camaradagem do começo do cinema novo (os perfis de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha).

Mas o amargor está lá, sulfuroso. Ele não é uma questão teórica ou estética, nem diz respeito só a Diegues. É o desencanto de um artista que precisa fazer comerciais para viver. De um cineasta de um país de cinema ralo e ruim. De um homem ameaçado pelo "poder dissolvente do dinheiro", expressão de Marx que ele cita. De um Brasil que muda pouco e devagar.


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