Folha de S. Paulo


Evento de manés extremistas

O evento será em junho. Todos o aguardam, o que é um contrassenso porque é da natureza do evento ser imprevisível. É o que dizem os filósofos: o evento é a aparição do invisível, a realização do impensável.

A ressurreição dos mortos é impossível, por exemplo. Mas eis que Cristo ressuscitou. O impraticável se materializou, criando possibilidades inimagináveis. A que vingou foi a transformação de uma seita judaica numa religião europeia.

Luiz XVI era inviolável. Mas em 1789 a bagaceira o forçou a ir de Versalhes a Paris. Foi um evento. A trinca na taça de chá abriu a trilha para a terra dos mortos. A monarquia caiu três anos depois. Passaram-se meses e a própria cabeça real rolou, guilhotinada.

Houve um evento na Rússia em fevereiro de 1917. Em outubro, revolução.

Não é o que costuma ocorrer. Vide Maio de 68. Vide a Primavera Árabe. Vide as Jornadas de Julho. Não as do ano passado, no Brasil. As originais, na Paris de 1848, "o mais colossal evento na história das guerras civis europeias", como escreveu Marx.

Num artigo na última "New Left Review", André Singer rechaça o termo Jornadas de Junho para caracterizar o que se passou no Brasil: milhões de pessoas nas ruas em 350 cidades; assalto a sedes do poder; tentativas de parar a Copa das Confederações; centenas de presos, dezenas de feridos, seis mortos.

Não tem cabimento a alusão a 1848. Lá estourou um levante, seguido de contrarrevolução e reação bonapartista.

Aqui houve um tremor de terra, é certo, mas não um terremoto. Melhor então, diz Singer, procurar uma designação neutra: os eventos de junho. Que seja.

Mas, como em todo evento, Junho inaugurou em período de incertezas. A energia se aproximou das perifas e o Planalto falou em Constituinte. Com o refluxo, esqueceu o assunto.

Vieram os médicos cubanos e as faixas de ônibus. Greves de professores bravos e de garis carnavalescos. Black Blocs, sanha por meganhas e juízes do Supremo. Marina abraçou Eduardo Campos. O PMDB e as teles se beijaram. O fio que provocou o curto-circuito continua desencapado.

Nem por isso o evento se repetirá tal e qual. Ele ficou para trás, é coisa de manés extremistas. Agora é hora para eventos planejados em planilhas Excel: aqueles que divulgam grandes homens, modelos de alto coturno e marcas cool.

Um brunch para lançar sandália criada por ianomâmis para o Instituto Alstom é um evento. Vernissage com Sabrina Sato num rolezinho, outro. Um terceiro seria a videoconferência de um candidato no Espaço de Transparência Participativa de Comunidades em Redes Sociais Diferenciadas de Inclusão Social.

Ainda bem que vem aí a Mãe de todos os Eventos. A Rave Planetária das Celebridades dos Gramados. O Esverdeio Maior da Mercadoria. Teremos em junho, como diz a presidenta, a Copa das Copas. Agora vai.

Ela servirá para martelar que qualquer moleque da periferia pode jogar no Barcelona e ter monte de carrões na cama e mulheres na garagem. A vibração cívico-esportiva nos congregará numa família feliz, exemplo para um mundo pasmo com nossa emergente pujança.

Turistas cheios da bufunfa quedar-se-ão boquiabertos em aeroportos de cair o queixo. Patrícios buliçosos batucarão em metrôs com espaço gourmet.

Nos estádios não se cuspirá no chão nem nos argentinos. Os ganhos em mobilidade urbana e sustentabilidade serão imortais como Paulo Coelho. Não haverá crianças fofas o bastante para tantos anúncios de bancos. Faltarão palavras a Galvão Bueno para descrever a emoção.

Isso é o que se propalava até junho passado. Não mais. Imagine-se um apagão nas oitavas de final. O Brasil eliminado nas quartas. Los Hermanos dando a volta olímpica.

E se imagine o contrário, Neymar erguendo a taça. Um evento é inimaginável.


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