Folha de S. Paulo


Tempo

É domingo. O celular acorda com 48 mensagens de What'sApp em resposta a uma mensagem fofa que um amigo postou para o grupo de amigas que ele mesmo criou a propósito do Dia Internacional da Mulher. Intempestiva, saio do grupo antes de ler todas as respostas que o Marcos recebeu. Preciso fazer outras coisas hoje, não quero me distrair desse jeito.

Dia Internacional é para quem precisa. Por isso tenho raiva de datas como o Dia da Mulher. Estou até com medo de entrar no Facebook. Vai ter aquela lambeção de egos, imagens edificantes, flores e cor de rosa por toda parte. E eu com vontade de jogar um balde de tinta preta retinta em tudo isso. Querem nos tratar bem? Tratem o ano todo. O Marcos trata, não é isso. É que essas datas e essas propagandas servem aos interesses de quem, mesmo?

Pode concluir que estou de mau humor. É justo. Acho que estou mesmo. Estou me sentindo oprimida pelas tensões temporais. Quero dedicar mais tempo a uma coisa, mas não estou conseguindo. Quero dedicar menos tempo a várias outras coisas, também não estou conseguindo. Há relógios por toda a parte, mas não controlo o tempo. Chego atrasada. Assumo mais compromissos do que dou conta. Em resumo: não estou conseguindo mesmo, embora tente fazer tudo certinho.

Tenho uma amiga que implica com o uso do gerúndio. Não apenas contra o uso impróprio, como em frases do tipo "estarei fazendo", usado em vez de um simples "farei". Tereza implica com o uso do gerúndio em geral, que considera excessivo no Brasil. Entendo, mas discordo. Acho o gerúndio uma forma verbal admirável. Do latim gerere: fazer, produzir, executar.

Não estou conseguindo. Gerúndio, forma verbal invariável. Uma ação em curso ou expressão de uma circunstância. Não estou conseguindo. É diferente de não consigo. Não estou conseguindo é menos categórico, menos duradouro.

Procuro explicações objetivas. Leio na Gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra que a característica do gerúndio, assim como das demais formas nominais do verbo (o infinitivo e o particípio), é não poder exprimir, por si, nem tempo nem modo. Seu valor temporal e modal depende sempre do contexto em que aparece.

No último sábado a Folha publicou um texto do New York Times apontando uma tendência global nos esportes, de encurtar o tempo das competições esportivas. O objetivo de desenvolver formatos mais compactos é atender ao público jovem, num mundo em que os períodos de atenção encolhem e se dispersam em telas de TV, telefone e outras mais.

Esta semana começa o festival Marina Abramovic de performances artísticas no Sesc Pompeia, em São Paulo. Na divulgação do aguardado evento, Marina aparece como "a maior" performer do mundo, como se arte fosse uma questão de tamanho. Seria mais justo falar em tempo: ela está com 68 anos, faz performances artísticas desde o começo dos anos 1970, ou seja, há mais de 40 anos, e insiste na importância da longa duração de cada trabalho, como caminhar milhares de quilômetros sobre a Muralha da China. Essa insistência em ralentar o tempo é, a meu ver, mais admirável do que as relações, utilitárias ou sarcásticas, que desenvolveu com Lady Gaga, Jay-Z ou a mídia em geral.

A divugação insiste: o festival é "a maior retrospectiva da artista sérvia já realizada na América do Sul" e ainda a "mais abrangente experiência até hoje aplicada pelo MAI" (Marina Abramovic Institute), instituto este que ainda nem foi aberto em Hudson, ao norte de Nova York, mas "todo mundo" conhece. O público, devidamente inscrito e cadastrado, vai poder testar o método de Marina, que nos últimos anos incorporou no trabalho a participação de cristais brasileiros.

Muitos vão falar, mas poucos irão suportar, imagino, e espero estar errada. O assunto na vida real é acelerar. A ambição é ter a maior rede, a maior velocidade, a maior capacidade, o maior sucesso, a maior grana.

Maior crise, isso sim.


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