Folha de S. Paulo


Selfie

Algumas semanas atrás, o fotógrafo Sebastião Salgado, 70 anos, se viu impelido a deixar mais cedo a abertura de sua exposição "Genesis", no Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília. A razão foi a mania que o público adquiriu de ficar tirando fotos de si mesmos a torto e a direito, em qualquer lugar, sem o menor respeito pelos interesses de quem está em volta.

"Há seis meses, abri uma exposição e as pessoas vinham conversar comigo, pediam um autógrafo, trocavam ideias. Agora acabou. Cada pessoa te agarra e quer tirar 'selfie'", disse Salgado em entrevista a Isabel Fleck, da Folha. "Bota um telefone ali, é uma agressão permanente em cima de você", desabafou o fotógrafo.

Será que o público de Sebastião Salgado percebeu que estava incomodando o fotógrafo com seus "selfies"? Se soubesse, será que se importaria? Temo que não. Suspeito que a maioria acha que o "selfie" é um direito individual incontestável. Quem se incomoda que vá procurar sua turma ou que busque se "atualizar".

Num show de música, outro dia, quando Lucas Santtana convidou a público a dançar no palco, um rapaz preferiu sacar o celular a se divertir com os outros ali. Tirar uma foto de si mesmo em cima do palco, numa pose congelada em que fingia que estava dançando, era mais importante que viver o momento e realmente dançar com as pessoas em volta. Uma clara substituição de viver o momento por viver uma representação do momento presente, para dar a ele uma sobrevida num outro contexto, num outro tempo, num outro espaço e com outros objetivos.

No último fim de semana, numa praia nublada no litoral de São Paulo, vi o ritual de quatro garotas se fotografando à beira-mar. Penteavam os cabelos com os dedos, puxando as pontas para a frente, congelavam um sorriso, algumas espichavam o bumbum para trás, outras faziam sinais positivos com os dedos e clique, clique e mais clique, numa sessão interminável. Uma heresia para mim, que sou de uma geração que recusou o papel de mulher-objeto.

O passeio das garotas se resumiu a isso? Aposto que não. O passeio deve ter continuado no Snapchat, no Facebook, no Instagram, no WhatsApp ou onde mais as garotas andaram distribuindo suas fotos, nessa compulsão que não é exclusivamente feminina, nem necessariamente jovem ou puramente urbana.

As pessoas hoje não só assumem o papel de se transformar em garotos-propaganda de si mesmos como encaram as atribuições de um publicitário ou um marqueteiro, dirigindo a cena, até que um passo em falso ou um amor desprezado estrague tudo espalhando imagens que não se quer ver por aí.

O conceito de "self" (o si mesmo) é central na psicologia e existe desde o final do século 19. A representação do "self" seria uma construção do ego, o eu, o núcleo de uma personalidade. Mas o que há de si mesmo nesses "selfies" todos? O que há de individualidade, de subjetividade, de essência desse eu que se autofotografa para consumo externo?

Isso me faz pensar nos distúrbios de personalidade resultantes do descolamento entre o "self" e o ego, ou seja, entre o eu e a representação do eu. E me lembra que o "self" grandioso é uma patologia. Essa imagem grandiosa de si mesmo e o exibicionismo são comportamentos típicos dos narcisistas.


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