Folha de S. Paulo


Registro taquigráfico do horror

Quando o Airbus da TAM explodiu no costado do aeroporto de Congonhas no começo da noite da terça-feira, deixando um rastro de mortes e uma herança de dor, na maior tragédia da aviação nacional, os jornais estavam a poucas horas de concluir suas primeiras edições.

A Folha passou a circular com um caderno especial. Nas críticas diárias, comentei-o à exaustão. Originalmente endereçadas à Redação, as críticas há alguns anos podem ser lidas sem restrições em www.folha.com.br/ombudsman.

Na quinta, escrevi 31 notas, das quais 14 seguem abaixo. As outras estão na internet, bem como os comentários da véspera, quando incentivei a abordagem plural das hipóteses para a causa do desastre. "Não cabe à Folha sentenciar", defendi.

A crítica diária tem menos fôlego jornalístico que a coluna de domingo. Composta a quente, está mais sujeita a erros. Também se pretende uma contribuição para o jornal do dia seguinte ser melhor que o da véspera. Quase sempre foca os defeitos e elenca sugestões. Na quinta, relacionou uma quantidade inusual de elogios.

Muitas observações logo são superadas, como se pode constatar nos exemplos que selecionei para mostrar hoje no papel o que faço (quase) todos os dias na internet. Na semana que vem, publicarei um balanço da cobertura.

O horror, o horror

Os leitores da edição São Paulo da Folha, concluída à 0h40, talvez tenham recebido hoje [quinta-feira] a melhor cobertura da tragédia em Congonhas.

Além da introdução de notícias ausentes na edição Nacional, como "Peritos detectaram fumaça, afirma presidente da Infraero", houve outras mudanças -quase sempre para melhor- em comparação com o jornal fechado às 21h30. Por exemplo, em vez de narrar o resgate nas págs. C2 e C3, dedicá-las à apuração das causas do desastre.

Um dos pontos altos foi a capa, comum às duas edições, do caderno especial. Nome por nome dos mortos, o registro taquigráfico do horror.

Houve problemas, e não poucos, como observo a seguir. Mas as árvores (erros e deficiências) não devem ocultar a floresta (o bom trabalho).

As causas

À medida que novas informações reforçam indícios sobre as causas do acidente, nunca é demais sublinhar: eventualmente, pode haver combinação de vários fatores (falha do avião, erro humano e condições da pista).

Mesmo que a pista não tenha contribuído para o desastre, é legítima e urgente a investigação jornalística sobre ela e a segurança do aeroporto.

Afirmação sem provas

A chamada da manchete ("Mortes de tragédia chegam a 192; Infraero cogita falha mecânica") faz a seguinte afirmação, repetida no caderno especial: "No segundo terço da pista, [o avião] acelerou".

Não há dados que sustentem tal certeza. O que se sabe é que o Airbus-A320 passou pela pista de Congonhas a uma velocidade maior do que a de aterrissagem. Isso se pode bancar.

Que a partir de certo ponto acelerou, (ainda) não.

Ainda sem provas

Ao contar o acidente quadro a quadro na pág. C3, afirma-se: "Vozes de dentro da cabine da tripulação do avião dizendo "vira, vira, vira agora" são escutadas por controladores da torre de controle".

Na pág. C2, contudo, o jornal lembra a hipótese "de que os gritos tenham partido de tripulantes de outra aeronave que, ao ver a manobra inesperada e trágica do Airbus, tenham involuntariamente [sic] gritado "vira, vira", numa espécie de torcida para que o avião escapasse ileso [...]".

Fontes diversas testemunham ter ouvido os gritos. Mas ainda não é possível ter certeza de onde eles partiram.

A voz dos leitores

Dezenas de leitores escreveram ao ombudsman opinando sobre o artigo de Francisco Daudt, colunista da Folha, cuja chamada na primeira página é "O nome certo do que ocorreu em SP é crime".

Até a conclusão desta crítica, a ampla maioria o condenou com veemência. Um leitor se disse "enojado".

Houve leitores que o elogiaram. Um deles afirmou se "sentir com a alma lavada".

Padronizar o horário

Depois dos horários diferentes citados ontem, a Folha fixa hoje 18h50 como o instante do choque.

Sugiro mudança: o vídeo de Congonhas que exibe a aterrissagem fracassada do Airbus da TAM registra o horário de 18h51 (pelo menos foi o que tive a impressão de ver na TV).

Detalhe? Pode ser. Nos eventos de relevo histórico, porém, se recomenda zelar ainda mais pela precisão.

Faltou dizer

A Folha acerta em comparar o índice de acidentes aéreos nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso.

Faltou, no entanto, um item: o número de desastres e mortes em proporção ao de passageiros. Nesse caso, a desvantagem funesta do presidente Lula pode ser superada pelo antecessor.
Triste confronto.

Também faltou dizer

A boa reportagem "Pista foi liberada após lobby de empresas" (pág. C11) afirma: "Dirigentes da Infraero e da Anac já mencionaram a existência de lobby de autoridades que não aceitariam se deslocar até Guarulhos para embarcar".

Fica a pergunta: quais são as autoridades? Que episódios ocorreram?

Exemplar

Fez muito bem a Folha em chamar a atenção para um aspecto da coletiva da companhia: "A preocupação com a imagem da TAM esteve presente durante toda a entrevista, de uma hora e meia. A logomarca não aparecia em lugar algum".

Isso é jornalismo crítico.

Em compensação...

Na pág. B2, foi lamentável a publicação de análise unilateral, sem contraditório, de dois professores da Coppe/UFRJ: "TAM não deve sofrer prejuízo de imagem".

O jornal tinha obrigação de buscar uma opinião divergente, oferecendo aos leitores posições plurais que ajudassem a formar juízo.

Grávidas, crianças

Os jornalistas que produziram as quatro páginas -emocionantes e inesquecíveis- sobre as vítimas do vôo 3054 podem se orgulhar do trabalho que fizeram.

Cadê Lula? Desequilíbrio

A reportagem "Presidente não telefonou para Serra e Kassab" (pág. C17) deveria ter ouvido -pelo menos tentado- o Palácio do Planalto.

Ela só traz versões dos governantes do Estado de São Paulo e de sua capital.

Por outro lado, o jornal não esclarece por que o presidente sumiu -e não telefonou para o governador e o prefeito. Por causa de um terçol? É isso mesmo? Ou teme ter a imagem associada ao caos aéreo e à tragédia de Congonhas? Por que o ministro Waldir Pires não deu entrevista ontem?

O que está por trás do silêncio? Falta apurar bastidores.

Casa de ferreiro

A reportagem "Jornalista da Folha é preso ao fotografar local" (pág. C12) não fornece informações essenciais que costumam constar de notícias sobre não-jornalistas.

Policiais militares detiveram um fotógrafo da Folha afirmando que ele "violara o cordão de isolamento no galpão da TAM, "atrapalhando os serviços do Corpo de Bombeiros" no local".

O que o fotógrafo tem a dizer? E o jornal? Afinal, seu profissional violou o cordão e atrapalhou os serviços? A polícia reclama que o fotógrafo colocou em "risco sua própria vida". É verdade?

É claro que truculência policial e atitudes anti-democráticas devem ser condenadas.

Mas a Folha precisa contar o que se passou. A reportagem não obedece aos padrões consagrados ao apurar fatos relativos a quem é estranho ao jornal.

Uma lição

Fez muito bem a TV Cultura em não exibir as imagens de uma mulher caindo do alto do prédio da TAM, por considerá-las chocantes.


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