Folha de S. Paulo


Uma fraude jornalística

A fotografia que você vê acima, publicada pela Folha no dia 24 de maio, não é bem o que parece. Não se presta a um "jogo dos sete erros", por haver mais.

Alguns deles:

1) Todos os clientes deixaram os guardanapos intactos sobre as mesas.
2) Os talheres estão igualmente intocados.
3) Ninguém foi servido de água ou outra bebida.
4) As mulheres estão sem bolsa, o que não é comum.
5) O garçom se aproxima para servir um café ao homem que ainda lê o cardápio.
6) Embora em cada uma das três mesas ocupadas haja apenas um cliente, não foram retirados os outros pratos (os três estariam à espera de exatos três acompanhantes?).
7) Restaurante é ambiente para relaxar, mas a mulher do meio trai o desconforto.
8) Não há couvert, entrada, prato principal ou doce nas mesas (em nova coincidência, os comensais seriam recém-chegados, embora o homem vá tomar o cafezinho?).

Não são coincidências: a foto que mostra aos leitores um restaurante em funcionamento é uma encenação. Saiu na Ilustrada, acompanhando crítica na seção "Comida".

Quem alertou o ombudsman foi uma leitora, consultora de gastronomia, que não quer se identificar em público. As observações numeradas acima são, quase todas, oriundas do seu olhar certeiro.

O chef do Picchi Ristoranti, Pier Paolo Picchi, não é o responsável pela farsa. Seu negócio são os prazeres da mesa, não o jornalismo. O crítico Josimar Melo, que não estava com o fotógrafo, classificou a nova casa como boa.

Por telefone, narrei as dúvidas a Picchi, e ele foi direto: "Você está certo". Quem eram as pessoas à mesa? "Não estou bem lembrado, mas deve ser gente que trabalha aqui."

O chef contou que se acercava a hora do almoço, mas nenhum cliente chegara. Ele estava presente. Quem teve a idéia da montagem? "O fotógrafo de vocês [da Folha]".

Pedi e recebi da editoria de Fotografia seis fotos. Uma revela o salão vazio.

Ouvi o autor da foto, Raimundo Paccó, 40, 20 de jornalismo, free-lancer da Folha há um ano. Ele reconheceu que funcionários do restaurante se transformaram em "clientes" e afirmou: "Não quis mostrar o ambiente vazio, não tive a intenção de montar a foto. Para não derrubar a pauta e conseguir fazer outras duas, acabei cometendo um erro. Estou extremamente arrependido".

A secretária de Redação da área de Edição, Suzana Singer, disse que o jornal "não sabia da encenação e que essa prática é condenada na Folha".

Recentemente, uma repórter da TV australiana ABC "flagrou" crianças brincando junto a um míssil no Iraque. A seqüência não-exibida denunciou que ela forjara a cena, orientando os meninos para a brincadeira perigosa.

O fotógrafo da Folha não expôs a risco a vida de ninguém. Mas, no conteúdo, a atitude é semelhante. Mostrou como autêntico um cenário que era falso. Inventou. Fotógrafo é repórter, não cenógrafo. Houve fraude jornalística.

Em 2001, como apontou o ombudsman Bernardo Ajzenberg, a Folha já publicara cena com um homem posicionado pelo fotógrafo sob um termômetro de rua.

Fraudes assim minam a credibilidade do jornalismo. Com a moderna tecnologia digital, é mais fácil manipular a imagem. Os leitores, contudo, hoje parecem bem mais atentos, o que é muito bom.


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