Folha de S. Paulo


Durezas

Mudanças reais e profundas, essa é a exigência nas ruas. Podemos discordar de algumas manifestações, ou de todas, mas reconheçamos: elas são sintomas de uma crise profunda que não se resolverá com a repetição de velhas receitas políticas. Esse é um drama de todos os povos e países, a grande distância entre o que a sociedade quer e o que o "sistema" está disposto a conceder. Mas há, no caso brasileiro, um agravante: a forma com que a malchamada "classe política" destrata as demandas sociais e criminaliza os movimentos populares.

Agora mesmo, no Congresso, notórios ruralistas criaram uma frente de "defesa das populações atingidas por áreas de conservação". Não basta diminuir o tamanho das áreas protegidas e anistiar desmatadores? E o que dizer da aprovação de remunerações no Judiciário acima do teto legal, com a possibilidade de depois estender a benesse ao Executivo e ao Legislativo, num momento em que a polícia –ela mesma malremunerada– é convocada para reprimir professores e outras categorias profissionais em greve por seus salários irrisórios?

A situação mais dramática permanece sendo a dos povos indígenas. Em meio à balbúrdia dos "civilizados", eles lutam para sobreviver. O projeto que inviabiliza a demarcação de suas terras, submetendo-a ao controle dos parlamentares, é mais uma investida no extermínio iniciado há cinco séculos. Outro projeto, da abertura para a exploração mineral, é a ordem de ataque.

Reprimir um protesto indígena com bombas de gás e balas de borracha, expondo manifestantes e policiais aos riscos de um confronto violento, como ocorreu nesta semana em Brasília, não resolve, só agrava os problemas.

Sabemos disso há tempo. Em 2000, no governo do PSDB, fomos violentamente impedidos de entrar na festa dos 500 anos do Brasil, na Bahia. Tentamos, sem sucesso, negociar com a polícia para que os índios fizessem seu protesto no local onde aportaram as caravelas. À noite registrei, em minha insônia: "Não foi na estampa do muro (...)/ que se anunciou a farsa/ mas nas bombas de gás/ (...) desenhada em fumaça". Hoje a farsa se repete com quem antes a denunciava.

Quem cantava com Cazuza "Brasil, mostra tua cara", agora quer escondê-la dos turistas, na Copa do Mundo. Mas não se trata de imagens, o conflito não é só simbólico. O retrocesso na política retira direitos e ameaça agravar problemas sociais. Para o povo nas cidades, a vida é dura; para os índios, mais ainda.

O sonho brasileiro era outro: que a estabilidade e o crescimento da economia gerassem cada vez mais bem-estar e inclusão social. Quanto à Copa, que deixasse um legado real de melhoria nas cidades. Se algo está saindo errado, não se pode culpar o povo.


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