Folha de S. Paulo


A nudez e o avesso

Há 50 anos, um sistema ditatorial sequestrou a potência dos atos políticos no Brasil. Sob controle e censura, a política tornou-se expressão de impotência, terreno estéril onde só cresciam pequenas disputas, maledicências e mesquinharias. As boas ideias e o bom combate, arrancados do chão, resistiam nas frestas dos muros.

A democracia restaurou a fertilidade. No chão da praça, outra vez do povo, reencontramos o poder de desejar. E nada "foi", tudo ainda é. Continuamos tendo que resistir às tentações autoritárias que permeiam nossa frágil democracia e afirmar –sempre voltando às ruas e praças– a política como potência de "acreditar criando", na feliz expressão da psicopedagoga Alicia Fernández.

Mas outro atalho –que resulta em descaminho– persiste entre nós: a ilusão da onipotência. O carisma personificado nos pais da pátria e dos pobres, o coronelismo das oligarquias, a manipulação emocional da propaganda, o uso abusivo de linguagem subliminar e imagens arquetípicas, tudo o que lastreia a política na concentração de poder atrasa a evolução da democracia.

É na política como exercício da onipotência que brota a decisão de eleger "postes" e cuidar para que se comportem como postes, até que sejam retirados do lugar por algum motivo tático ou estratégico de quem os colocou. É também ilusão de onipotência tratar os cidadãos-sujeitos como eleitores-objetos, que tem proprietários e podem ser roubados por pretendentes não autorizados.

Avançamos na história quando afirmamos a política como potência, carregada com a energia das ideias e sonhos, necessidades e desejos. Evoluímos em civilização ao reconhecer nossa humana incompletude e promover o diálogo entre os que não tem a ilusão de bastar-se. Retrocedemos quando sucumbimos à política da impotência ou da onipotência, ambas baseadas na deposição do único detentor legítimo do poder na democracia, o povo, e sua substituição por indivíduos ou grupos que se julgam editores da história e donos da civilização.

Quando a perversão não consegue disfarçar-se de virtude, dizemos que o rei está nu. Os pensadores rebeldes, de Nietzsche a Foucault, desnudaram e expuseram a natureza do poder. Os novos meios de comunicação estão ampliando essa consciência de milhares para milhões.

Na Amazônia, quando o caboclo se perde na mata e vê que está sendo atraído por uma jiboia que o faz andar em círculos, apela para o inusitado: veste a roupa pelo avesso. Assim desfaz o encanto hipnótico e encontra o caminho.

Eis o Brasil na esquina do mundo: o rei nu, o povo ao avesso. Um momento instigante em que se pode distinguir os caminhos dos atalhos.


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