Folha de S. Paulo


Arquibancadas expõem recorte trágico do que o Brasil é

Márcio Alves - 13.dez.2017/Agência O Globo
Flamenguistas tentam invadir Maracanã em final da Sul-Americana

Num país em que crianças apedrejam Papai Noel porque acabaram as guloseimas não dá para ficar surpreso, nem sequer chocado, com a barbárie dos torcedores de futebol. No domingo (10), em Itatiba, no interior de São Paulo, um grupo de voluntários participava de uma ação de Natal e foi hostilizado porque os doces acabaram. Papai Noel teve que fugir com trenó e tudo para não ser vítimas das pedras atiradas por crianças com idade entre 9 e 12 anos. Mas não escapou dos xingamentos. Foi chamado de filho da puta e mandado tomar naquele lugar.

Alguém duvida que é de uma infância assim que saem os torcedores que vão lotar as arquibancadas, ameaçar juízes, jogadores, depredar estádios por dentro e por fora, se envolver em brigas de morte com torcidas adversárias?

O que aconteceu na final da Copa Sul-Americana pode ter deixado muita gente assustada. Mas é o que acontece semanalmente em maior ou menor grau no futebol brasileiro. As brigas de torcida são responsáveis por dez mortes apenas em 2017. É o recorte trágico do que o Brasil é.

Vivemos todo tipo de intolerância em nossa sociedade: racismo, machismo, xenofobia.

Temos a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, somos o país que mais mata travestis e transexuais. Não à toa, estamos no topo dos que mais registram mortes relacionadas ao confronto entre torcidas. As pessoas morrem apenas porque torcem por um time.

O poder público leva uma goleada atrás da outra na intenção de coibir a violência. Multa, interdita estádios, determina torcida única. Ou seja, apenas enxuga gelo.

Fora dos estádios, os torcedores continuam se matando, inclusive porque os clubes não fazem nada para afastar os bandidos que infestam as organizadas. Pelo contrário, continuam as abastecendo com ingressos e muitas vezes com dinheiro.

Pode-se achar deprimente, lamentar, ficar revoltado que uma das maiores paixões do brasileiro tenha se transformado num espetáculo tenebroso sob esse ponto de vista. Vi posts de pessoas apavoradas com o que aconteceu no Maracanã na decisão entre Flamengo e Independiente. Amigos que levaram filhos pequenos. São amigos, mas não sei o que tem na cabeça ao levar crianças para um estádio de futebol.

Os torcedores do Flamengo começaram a dar show de falta de civilidade na noite e na madrugada que antecederam o jogo. A informação é de que 2.000 desocupados fizeram baderna em Copacabana perto do hotel em que supostamente estariam os rivais para que não dormissem. O que conseguiram foi não deixar em paz os moradores do bairro. A polícia autuou 49 pessoas, entre elas quatro menores. Foram apreendidos pedras e morteiros.

Tem gente que diz que isso faz parte. Que história você vai contar aos seus filhos? Olha, Joãozinho, fomos campeões da Copa Sul-Americana porque não deixamos os adversários dormir, passamos a noite tocando terror ao lado de fora do hotel e eles estavam tão cansados que isso influiu no desempenho.

O Maracanã virou um palco de guerra. Quem foi para se divertir virou refém da situação e levou horas para ir para casa em segurança. Flamenguistas foram acusados. Tanto faz. Troque o estádio, o time, a decisão e o resultado teria sido o mesmo. Ou pior. Dessa vez, não sei como, não morreu ninguém.


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