Folha de S. Paulo


Culpa

Roger Lerina/Folhapress
Obra de Bia Leite da mostra
"Não gosto de indicar exposições; vai que a pessoa acha que estou fazendo apologia à pedofilia"

Sinto culpa por tudo.

Se chamo uns amigos para conhecer um bar, já começo a sofrer na porta. Por causa da fila, do ar-condicionado muito forte, muito fraco, porque não tem o raio do ar. Sinto como se uma bala Soft tivesse escapulido para dentro da traqueia, se está muito cheio, muito vazio, se toca sertanejo, se não toca, se a cerveja não está gelada, se só tem importada, se não tem, se fazem Negroni (está na moda, certo?), se alguém resolve fumar em 2017 num ambiente fechado, se não pode fumar, onde já se viu um lugar que não pensa nos fumantes?!

Não gosto de indicar livros, músicas, filmes, peças de teatro ou exposições. É bom? Não sei. Não lembro. Não fui. Dormi. Saiu de cartaz. Não comprei ainda. Vou me culpar, pela perda de tempo, de dinheiro. Do outro. Já me convenço de que é a amizade o que pode se perder. Vai que a pessoa acha que estou fazendo apologia ao racismo, à pedofilia, ao gayzismo, ao uso do botox antes dos 30, aborto como método contraceptivo, à volta dos militares ou da pochete. Melhor, não.

Sugestão de restaurante? Até arrisco. Sempre o mesmo. Sem ousadia. De preferência, se o cardápio for o de sempre. Só como o mesmo prato. Tenho apego, minto. É aquela loteria. Tem o humor do garçom, se o chef está com a lua em Virgem, se o prato veio no ponto, se é pouca comida, a conta é cara, a música, alta. Tem também as outras mesas. Como controlar gente que grita como se estivesse num clássico de futebol? E quando tem criança? Mas e quando são os filhos do amigos que provocam cara feia? Quero morrer de congestão.

Uma grande amiga se interessou por um cara que considero irmão. É ótima pessoa, péssimo namorado. Falei, não presta. Não adiantou. Falei, transe, mas não se apaixone. Não adiantou. Enquanto ela transbordava de ocitocina e de orgasmos múltiplos, tudo foi bem. Quase fui alçada ao posto de santa casamenteira. Um dia ele comprovou minha teoria de que não prestava. Eu de férias na Europa, ela me manda um textão que deve ter inaugurado o estilo na internet, dizendo o quê? Seu amigo não presta. Morri de culpa. Como não protegi uma marmanja de 30 anos?

Briguei com alguém de quem gosto muito faz uns meses por causa de política. Eu estava certa e ela errada, claro. Ou não. Sinto culpa, porque tenho saudade, não pela briga. Porque eu estava certa, claro. Ou não. Resolvi esta semana que não falo mais sobre esse tipo de assunto. Quando penso em entrar em uma treta, arrumo uma louça para lavar ou um armário para limpar. As pessoas não estão preparadas para descobrir o que os amigos pensam. Nem eu. Mas eu tinha sempre uma palavra para ajudar os idiotas a se reconhecerem. E depois morria de culpa, porque o mundo está cheio de idiotas que são pessoas boas. Vomitava minha verborragia e morria de culpa. Cabou. Agora o estômago regularizou a produção de suco gástrico, parei com o Rivotril e durmo tranquila.

Alguém pode se reconhecer nesse texto, talvez seja melhor não. Ou sim. Vai com culpa mesmo.


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