Folha de S. Paulo


A vida acontece enquanto falamos sobre política

Laís Alegretti/Folhapress
Plenário da Câmara dos Deputados em dia de sessão

Na semana passada, tive um compromisso de trabalho e acabei passando a noite em São Paulo, no carinho da casa de uma amiga. Ela chegou tarde, trouxe vinho, ingredientes para um risoto de linguicinha apimentada com abobrinha. Tombei o corpinho cansado na parede da cozinha, só fazendo esforço para levantar a taça, entre o cheiro de cebola frita, o barulho da água que fervia para alimentar o cozinho e a conversa calorosa, apesar do tema árido.

Nos conhecemos desde a época da faculdade, o que significa que já passou um tanto de chão por baixo de nossa história. Depois de formadas, dividimos apartamento, contas, segredos, frustrações, vontades, alegrias, vergonhas e ressacas. Mas nunca nenhum homem.

Ela sempre preferiu um estilo intelectual-malvado-hipster. Eu não tinha tipo, eu cismava, mas não a ponto de encarar alguém com chinelo franciscano, calça de algodão orgânico, desses que enrolam o próprio cigarro. Portanto, nossas preferências nunca trombaram com nossos desejos. O que nos ajudou a garantir mais de duas décadas de amizade sem cobiçar o macho alheio. Sempre fui a primeira a receber notícias fresquinhas sobre o campo fértil de sua vida amorosa - e vice-versa.

Apesar de ser a casa dela, agora, sempre me sinto como se estivesse na minha. Não apenas pelo aconchego, que apenas uma amizade tão longa pode proporcionar, mas porque em cada canto há lembranças de móveis, objetos e aromas que recheavam um antigo endereço que um dia foi nosso.

Passamos algumas horinhas falando sobre o assunto favorito em rodas de amigos, hoje: política. E concluímos que todo mundo está lascado. Todo mundo, nós, o povo.

Já no café da manhã, ela me conta, no mesmo tom de quem falaria que se esqueceu de pendurar roupa no varal, que esteve apaixonada por um fulano.

E antes que eu pudesse dar uns gritinhos histéricos, fizesse uma dancinha pornográfica para simular o casalzinho, perguntasse se foi bom ou se foi apenas efeito de substâncias entorpecentes, aquelas coisas que só a cumplicidade de amizades muito longas permite, me senti, primeiro, traída. Como assim, uma amiga conhece alguém, se apaixona, desapaixona e apenas tomo conhecimento dos restos mortais do romance?

E antes que eu ousasse ficar feliz, curiosa, saber se o moço declama poesia enquanto enrola seu próprio cigarro, se abaixa a tampa da privada depois de usá-la, se carrega suas próprias camisinhas ou se tem "alergia", se não namora porque tem trauma, se foi no Tinder ou no Genial, me senti, num segundo momento, incrédula pela informação sonegada.

Desde quando deixamos de falar de coisas realmente importantes como homens, sexo, dietas, viagens, barbeiragens do cabeleireiro, trânsito, noites mal dormidas, excesso de trabalho ou falta dele, chefes malvados e salários injustos, para discutir sobre política o tempo todo?

A vida adulta é isto? Analisar a distribuição de dinheiro de emendas, compra de deputados, dinheiro para fundo partidário, doação eleitoral sigilosa, corte no salário mínimo, desdobramento da operação Ponto Final, as camareiras da primeira dama, a tornozeleira do homem da mala, a careca do Eike?

Que bela bosta.

É ótimo que a gente fale mais sobre todos os problemas que nos afetam e a política está ligada à maioria deles, mas o tempo todo e nessa ordem de grandeza? Nas redes sociais, nas mesas de bar, na hora de fazer um risoto apimentado, numa sexta fria e chuvosa, quando tudo o que quero saber é com quem minha melhor amiga está transando?

Do jeito que a coisa anda, um dia ainda encontro esta ou outra amiga qualquer, alguém sobre quem acompanho todas as opiniões políticas, em quem votou, se gritou #foradilma ou #foratemer, se foi contra o Brexit, se compartilhou o tweet do Obama, se acredita que nazismo é de direita ou de esquerda, e descubro, que nesse meio tempo, ela se casou, teve gêmeos, mudou de emprego, se separou, trocou de profissão, virou vegana, mora em Pirenópolis.

E a gente discutindo se vota no Macaco Tião ou se muda para Portugal.


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