Folha de S. Paulo


Seu corpo, suas regras, sua comanda da balada

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Balada Nos Trilhos leva público à Mooca
Público na balada Nos Trilhos, no bairro paulistano da Mooca

Com a proibição de que o preço da entrada de casas noturnas e festas seja mais barato ou isento para mulher podemos respirar aliviadas. Mais uma vitória contra este mundo machista. Daqui para frente não seremos mais tratadas como "iscas" baratinhas para atrair homem. Não seremos mais um produto de marketing para que empresários malvados encham os bolsos de dinheiro.

Estamos salvas.

Respiro, tranquila. A partir de agora nenhum homem vai passar a mão na minha bunda, esfregar o volume de suas calças no meu corpo, enquanto tento passar espremida no meio da multidão a caminho do bar. Adeus aos puxões de cabelo, às mãos taradas em torno da minha cintura. Não haverá mais tentativa de beijo à força. Nem o risco de um mau caráter tacar um treco na minha bebida, me arrastar embora e transar comigo sem consentimento. E nenhum deles vai me chamar de vagabunda quando eu me negar a dar atenção.

Que alívio.

E tudo porque o governo teve a ideia tão simples de proibir que se cobrem valores diferenciados para homens e mulheres. A gente só precisava pagar por isso e, assim, resolver um problema grave de abusos sem fim que acontecem nas casas noturnas.

Um preço tão pequeno pela tranquilidade de saber que de agora em diante o comportamento dos homens, todos eles, vai mudar simplesmente porque vou pagar o mesmo valor para entrar numa boate ou sentar num bar para ouvir (socorro) música ao vivo. Talvez fosse mais simples e ainda mais eficiente se as mulheres fossem obrigadas a pagar mais. Quem sabe não sair de casa e, assim, não correr riscos desnecessários, não é mesmo? Fica a dica.

Porque o problema nunca foi o machismo da nossa sociedade. Ou a ideia com a qual alguns marmanjos saem de casa achando que mulher na balada está disponível e esteja incluída no preço do couvert. Não tem a ver com a educação equivocada que algumas famílias ainda dão a seus filhos, de que existe mulher para isso e mulher para aquilo, que algumas merecem respeito, outras, não.

O problema era o preço diferenciado da balada. Agora vai.

Não, meus queridos, nada vai mudar. Os insistentes, inconvenientes, grosseiros, assediadores vão continuar exatamente do mesmo jeito. E ainda vão tirar onda de que pagam a mesma coisa para estar ali. Direitos iguais, dirão. Vão chamar mulheres, feministas ou não, de otárias, enquanto continuam passando a mão na bunda ou enfiando os dedos dentro das calcinhas das garotas, sem permissão.

Não se muda o comportamento de uma sociedade, ou de parte dela, apenas com uma canetada cheia de boa intenção, mas tão fraca que o resultado são homens comemorando a mudança e muitas mulheres reclamando, achando que o grande problema dessa decisão é ter que pagar a mesma coisa, quando, em alguns casos, ainda recebem salários menores.

Não sou contra pagar igual. Sou contra o Estado interferir no mercado dessa forma e ainda posar de defensor das causas feministas com uma medida que só vai penalizar o bolso das mulheres, sem que elas estejam mais protegidas quando saem de casa para se divertir. Não estarão.

Essa norma, e o apoio que ela recebeu, trata todos os homens como tarados ensandecidos, movidos a hormônios descontrolados, machistas de carteirinhas, que acham que ao pagar mais para entrar num estabelecimento têm o direito de abusar de outra pessoa. Muitos agem dessa forma? Sim. Todos? De jeito nenhum.

E coloca todas as mulheres no papel de moçoilas desprotegidas, incapazes de decidir sobre o lugar que frequentam, o tipo de homem com quem se relacionam, se aceitam se submeter às vontades alheias por uma garrafa da bebida que pisca ou de cerveja quente.

Não estamos falando de meninas indefesas, que se prostituem na beira da estrada em troca de comida, ou dos vulneráveis estuprados por gente conhecida, que representam 70% dos casos de violência sexual no país.

Falo de marmanjas, maiores de idade, que receberam educação para escolher onde e com quem andam, quem paga suas contas. Seu corpo, suas regras, sua comanda da balada. Que cada uma faça o que quiser com tudo isso. Um baita problemão classe média sofredora.

O argumento de que os estabelecimentos usam as mulheres como estratégia de marketing para atrair homens apenas distorce negativamente o significado de se relacionar. Como se paquerar, seduzir, desejar, beijar fossem privilégios masculinos. Dá ao homem um poder que as mulheres têm lutado tanto para conquistar. Pior, fica a sensação de que sexo é prerrogativa deles. Não é mais.

Vocês acham que as minas vão na buáti fazer o que? Terapia coletiva? Reunião para salvar o mundo? Gritar #foratemer? Dançar a coreografia da Anitta?

A gente vai para conversar com as amigas no banheiro, dançar até o chão, mas também para fazer forfait. Se não, a gente iria em sarau de poesia ou ficava em casa vendo Netflix, de pantufa, sem gastar com drenagem linfática. É bom, é saudável, deveria ser natural. Se for consensual, tanto faz quem pagou mais ou menos.

Machismo e violência sexual se combatem de outra forma. As mulheres vão pagar uma conta que não servirá para nada. O Estado finge que combate o machismo e a gente finge que o mundo está menos desigual e violento.

PS.: A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de São Paulo conseguiu esta semana liminar que derruba a proibição da cobrança diferenciada, mas só é válida para os estabelecimentos associados.


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