Folha de S. Paulo


Trato bicho como filho

Blickwinkel/Alamy
Gatos domésticos têm uma tendência a brigar
"Trato meus dois gatos como filhos"

Confesso. Trato meus dois gatos como filhos, falo com eles com voz de criança. Pergunto se estão com fome, com frio, com sede, com sono. Chego em casa e quero saber "cadê os amores da mamãe?". Paro no meio do caminho até a cozinha para fazer carinho, dar beijinho, amassar. Vin-te ve-zes por dia.

Meu colega de coluna Marcius Melhem escreveu esta semana que não existe a menor possibilidade de ele tratar bicho como gente. "Bicho é bicho, gente é gente."

Eu era mais ou menos desse time. A primeira vez que tive um cachorro só meu, há uns 20 anos, disse que ele jamais dormiria na cama. Minha convicção durou até a primeira manhã em que acordei e dei de cara com a cabecinha do Oscar no travesseiro. Poucas vezes me olharam de forma tão amorosa e sincera. Derreteu meu coração e minhas regras de higiene.

Há um ano, adotamos uma gata. Comprei enxoval, caminha, mantinha e travesseirinho. E ganhei a carteirinha do bizarro mundo das pessoas que apelam ao diminutivo para falar com bebês, animais e plantas. Como se isso estabelecesse um canal de comunicação mais eficiente e não me deixasse apenas patética. No começo, tentei me policiar para falar apenas na presença dos gatos. Agora, parentes, amigos e desconhecidos já consideram caso perdido.

O chão da sala parece um playground e a mala de uma viagem tinha mais presentes para os bichos do que para os donos da casa. Precisei colocar limites, mas estou prestes a ceder e deixar que sejam instaladas prateleiras nas paredes, não para mais livros, mas para que os pitucos sintam-se estimulados a brincar. Eles gostam de ficar em lugares altos, diz Jackson Galaxy, uma espécie de Super Nanny dos gatos. Adeus, decoração.

Em dois meses, descobrimos que a "princesinha do papai", encontrada na lata do lixo, era um menino. Aparentemente quem tem gato tem uma história dessa para contar. Mas nos sentimos especiais e sempre damos um jeito de entediar alguma pessoa, relatando o caso como quem descreve a descoberta de um filho trans. Final feliz.

Adotamos mais um felino há quatro meses e nosso grau de insanidade –ops, de cuidados– só piorou.

Recentemente vimos o documentário "Pet Fooled" e concluímos que a comida industrializada é veneno para os pixucos. A gente come até pedra, comida com agrotóxico acima dos limites, carne com papelão, mas o freezer agora é metade comida crua para gato, devidamente balanceada, com ômega 3, complexo B e taurina manipulada. Feita em casa. Já contei como o pelo está maravilhoso e o cocô sequinho e sem cheiro? Eu sei, é grave.

No momento em que escrevo, um deles sobe no meu colo, se aninha e dorme, o que me deixa imóvel, com um olhar de adoração. Fico com a perna dormente, o prazo no limite, a bexiga cheia, mas não ouso me mover porque o coração suspira quentinho.

O leitor talvez diga que preciso de um filho. Talvez. Meu psicanalista diz que querer ter filho é uma coisa, tratar bicho como filho é outra coisa. Me tranquilizei.

O "pai" dos pitucos fecha a janela porque o vento está frio e diminui o volume da TV. Tudo para não atrapalhar a soneca dos meninos. Falei que cubro com mantinha? Dia desses dei de cara com ele com os olhos cheios d'água porque o gato de um amigo morreu. Pensei na hora nos pixuquinhos, me disse. Poucas vezes o vi daquele jeito. Nem no nosso casamento.

Três semanas fora de casa, ele chega de viagem. Eu, toda trabalhada no coque despretensioso e numa bata sexy, curtinha, caída no ombro, descalça, fazendo a brejeira, rímel preto nos cílios e blush na bochecha, para dar um ar natural de "acordei assim, saudável".

Abro a porta, ele larga as malas, como no clipe do Roberto Carlos... "eu voltei, aqui é meu lugar...". Entra correndo e abraça o gato. Nunca fomos tão felizes.


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