Folha de S. Paulo


Daniel Alves veio da PQP para disputar mais uma final da Liga dos Campeões

Carl Recine Livepic/Reuters
Daniel Alves treina no Millennium Stadium, em Cardiff (País de Gales); Juventus e Real Madrid decidem o título da Liga dos Campeões, neste sábado
Daniel Alves treina no Millennium Stadium, em Cardiff, antes da final da Liga dos Campeões contra o Real Madrid

Daniel Alves segue um ritual antes de todos os jogos. Durante cinco minutos ele se posiciona em frente ao espelho e esquece todo o resto. Um filme começa a rodar em sua cabeça. O filme de sua vida.

O lateral direito da Juventus, da Itália, vai repetir essa rotina hoje antes de entrar em campo para enfrentar o Real Madrid na final da Liga dos Campeões da Europa.

E durante aquele curto espaço de tempo vai lembrar da infância difícil, do pai com um tanque de pesticida para pulverizar a colheita, dos 20 km que separavam sua casa da escola, dos domingos em frente à TV em preto e branco, da academia de futebol, de roubo, de mentira, de ter saído da "PQP" para se tornar um dos jogadores brasileiros mais bem pagos do mundo, colecionar títulos e convocações pela seleção brasileira.

Dani, como é conhecido entre os amigos, deu esse depoimento em primeira pessoa ao site The Players Tribune. Com o título de "O Segredo", o texto desnuda de forma sincera e emocionante as lembranças do jogador. Desafio os machões a conter as lágrimas.

O começo da história de Dani é o mesmo de milhares de meninos que também moram na PQP, mas dificilmente sairão de lá. A PQP, berço de muitos jogadores brasileiros, é quase sempre um lugar na periferia ou longe dos grandes centros urbanos, marcado pela miséria, pela seca, pela falta de expectativa e de oportunidade.

Se na classe média o sonho de muitos meninos hoje é ser youtuber, na pobreza encravada pelo país afora crianças ainda vislumbram no futebol a única chance de deixar a PQP para trás, realizar o sonho de se tornarem craques milionários.

A maioria desses meninos não sabe onde fica Cardiff, nunca ouviu falar na capital galesa, palco da final da Liga dos Campeões, mas, tal qual Daniel Alves, embarcaria no primeiro avião rumo ao desconhecido, ainda mais se alguém dissesse que Cardiff é uma das paradas finais de quem consegue sair da PQP.

A realidade, sabemos, é crua e triste. Quatro em cada cinco jogadores do futebol brasileiro ganham no máximo R$ 1.000, segundo dados divulgados no ano passado pela diretoria de registro e transferência da CBF.

Não é preciso fazer muito esforço para pensar em uma dezena de profissões igualmente mal remuneradas, mas que não alimentam o sonho de deixar para traz pobreza e desigualdade. Pedir dinheiro num cruzamento movimentado é capaz de garantir um ganho bem maior do que esse. Mas há poucas profissões com a magia, a fama e o dinheiro que o futebol tem.

A minha torcida, assim como a de muitos brasileiros, seria para o Real Madrid, em especial por Cristiano Ronaldo. O jogador não é só talentoso, mas carismático, generoso com causas sociais e ainda peita o mundo com irreverência cada vez que é chamado de bicha, como no episódio que envolveu o meia Koke, do Atlético de Madri. "Bicha, mas cheio de dinheiro", respondeu.

Mas é impossível ficar indiferente ao texto de Daniel Alves. Torcer pela Juventus e pela vitória dele é torcer para que milhares de meninos que moram na PQP tenham alguma oportunidade. Para que possam um dia olhar para trás e repetir o que Dani fala em frente ao espelho antes dos jogos: "Mano, eu vim da PQP. E estou aqui agora. É irreal, mas eu estou aqui."


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