Folha de S. Paulo


Pão, circo e sangue

Só soube de orelhada que o Brasil ganhou de três, que a Arena Corinthians estava lotada de torcedores entusiasmados, que Neymar saiu aclamado. Parece que a torcida fez as pazes com o time, com o técnico, com o futebol brasileiro. Página virada.

Somos um povo que gosta de pão e circo. E nos contentamos com as migalhas que nos atiram: algumas vitórias, classificação garantida para a Copa do Mundo e, voilà, já começamos a gritar "é hexa".

Nada como o futebol para juntar coxinhas e petralhas aplaudindo uma entidade corrupta como a CBF.

Um colega, jornalista, a quem admiro muito, diz que "a seleção não é da CBF, mas do torcedor", e que se eu deixar contaminar tudo que gosto com a sujeira de alguma etapa da cadeia (de produção) não me sobrarão muitas opções.

Ele tem razão. Até hoje não coloquei os pés no Itaquerão e não me lembro da última vez que vi a seleção jogar. Talvez tenha sido em 2014. Queria ser mais romântica e me deixar levar pelo amor ao esporte e à camisa amarela, mas então lembro que essa camisa carrega um símbolo, para mim nefasto, o da CBF. Acabo mudando de canal.

Ele tem razão. Fico nessa ranzinzice solitária, enquanto o povo se diverte. Deveria começar a arrumar as malas com destino à Rússia e mandar um cartão postal para Del Nero. Ele não pode viajar, mas eu posso.

O boicote tinha que ser completo. Atletas deveriam se negar a jogar, o técnico deveria honrar a sua assinatura no abaixo-assinado que pedia a saída de Marco Polo Del Nero. Os patrocínios deveriam minguar até que a CBF ficasse raquítica e não tivesse mais como se sustentar.

Como diria Maria Bethânia, sonho meu, sonho meu.

SANGUE

Pelo visto também gostamos de sangue. Só isso explica a falta de sensibilidade e de timing da diretoria do Flamengo ao aprovar o vídeo para a campanha "Isso aqui é Flamengo!". O objetivo, dizem, era mexer com o emocional da torcida. Resta saber que tipo de torcedor ficou "mexido" com um filme tão sombrio.

O Flamengo acabou de ter integrantes da Torcida Jovem presos pela morte do botafoguense Diego dos Santos. Fico perplexa ao pensar na quantidade de gente envolvida na criação de uma campanha dessa e ninguém para dizer que o resultado é de mau gosto atroz, além de mostrar a total falta de conexão com a urgência de colocar um ponto final nos episódios de violência entre as torcidas.

O comediante Claudio Manoel, torcedor do Flamengo, descreveu com perfeição, por que o resultado final incomodou mesmo gente muito apaixonada pelo time.

"Além do ufanismo meio babaca e metido a machinho, a 'peça' tem uma óbvia associação de futebol/torcida com raiva/violência, não só no tom e conteúdo do texto, passando pelo 'som', com a simbiose clichê: 'batimentos cardíacos/adrenalina', mas, principalmente, nas várias imagens de gosto e conceito pra lá de duvidosos: um coração sendo esmagado, um líquido vermelho que faz alusão a sangue e o slogan final escrito em chamas, com uma simbologia também óbvia. Acho que orgulho e paixão são uma coisa, raiva e exibição de testosterona, outra. A campanha visa encher os estádios com famílias ou hooligans? Atrai mais rivalidade e ódio ou o público feminino? A quem tem como alvo: os que amam ou os irados?"

Pelo jeito os que querem sangue.


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