Folha de S. Paulo


A mulher de burca e eu, a pelada

Juro que tento fingir naturalidade, mas em algumas situações os olhos reviram, o cérebro performa duplos twits carpados e o estômago dá uma cambalhota. É assim com cicloativistas pelados e mulheres de burca.

Preciso de um "Globo Repórter" inteiro para conseguir entender como conseguem, onde vivem, o que comem, tomam banho ou só se limpam com toalhinhas umedecidas. Nunca sei como reagir. Fico entre a pena, a inveja, a curiosidade.

Você está lá, tomando um chope gelando, tentando esfriar a cabeça e lá vem uma tropa de pelados em suas bicicletas, passando em frente ao bar. Não adianta, meu cérebro sublima a razão da manifestação e me pego olhando para peitinhos diversos, pintinhos encolhidos, bundas murchas e avantajadas, e sempre penso: quanta gente corajosa.

Eu também protestaria pelo direito de que a gravidade não exerça sua tirania e leve para baixo o que sempre ostentei para cima. Bunda e peitos, para o alto e avante. Mas nunca é sobre isso.

Cicloativistas têm causas mais nobres, das quais nunca consigo me lembrar, imagino que clamem por mais ciclovias, mais segurança, que queiram se libertar de convenções, da ditadura do carro - e das roupas, querem sentir livres seus peitos e pintos que balangam no asfalto esburacado. Quero levar a sério, mas tudo que penso é que vinte agachamentos por dia fariam uma baita diferença no resultado da bicicletada.

Com mulheres de burca é a mesma coisa. Fiz piada o ano inteiro de que precisaria de um burkini para enfrentar a praia e eis que me vejo frente a frente com uma moça toda trabalhada na burca –que nem é burca, porque não cobre os olhos. Neste caso era um xador, roupa que esconde todo o corpo e deixa o rosto de fora. Mas burca virou o genérico para o vestuário feminino islâmico, então, vamos de burca para facilitar.

Na camionete que nos levava da praia, de onde desembarcamos de uma lancha, para o hotel, no sul da Tailândia, eu fazia que não era comigo, mas não conseguia parar de espiar a moça sentada quase à minha frente. Eu, de shortinho, camiseta e havaianas, suando mais do que romeiro no Círio de Nazaré, só pensava no calor que ela devia sentir. Será que essa roupa toda não dá um mega cecê? Será que já fabricam em tecido bactericida?

Ela parecia plena e, se suava, disfarçava bem. Só com muita fé para não derreter nesta estufa. Eu queria saber tudo sobre ela. Seria uma moradora dos Emirados Árabes ou da Arábia Saudita? Quanto tempo era casada, se trabalhava, se podia estudar, se tinha filhos, se podia ir ao shopping com as amigas, se usava roupas de grife embaixo da burca, se tinha Facebook, se fazia selfies, se postaria textão com #nãopassarão, se dedaria alguém na campanha #meuamigosecreto, se fazia chapinha no cabelo, se dava para descuidar da depilação, mas principalmente se não tinha vontade de arrancar aquela roupa toda, dar um mergulho, passar Rayito de Sol e pedir um mojito para o garçom.

Depois de algumas tentativas de interação, desisti. Ela sempre estava acompanhada do marido, não falava com ninguém, nem com os funcionários do hotel, e não me olhava nem de cantinho de olho. E assim foram os quatro dias em que nos cruzamos no gramado que rodeava os chalés, nas mesas do café da manhã, nas espreguiçadeiras da praia. Ela, coberta da cabeça aos pés, eu, seminua, como uma índia tupinambá, besuntada em Australian Gold FPS 8.

Até que no último dia, enquanto eu traçava meus ovos mexidos com bacon, percebi que ela me olhava. Quase engasguei com o pedacinho de pão, molhadinho na gema, mas mantive o olhar. Foram três segundos, antes que ela me abandonasse de novo com todas aquelas perguntas sem respostas. Foi uma fração de tempo em que ela me olhou, sem esboçar nenhuma reação, mas suspeito que aquela infração no comportamento foi solidariedade apenas para me dizer: moça, era melhor ter trazido o burkini.


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