Folha de S. Paulo


Há muitas perguntas sobre como nos relacionamos com gente que é invisível

A Paraolímpiada nem começou, mas nossa falta de intimidade e de traquejo com as questões relacionadas às pessoas com deficiência ficou clara com a gritaria em torno da campanha "Somos Todos Paralímpicos", estrelada pelos atores Cleo Pires e Paulo Vilhena.

Quem não acompanhou o quiprocó, foi o seguinte: fotos dos atores passaram pelo Photoshop e Cleo aparece com um braço amputado, "representando" a atleta de tênis de mesa Bruninha Alexandre. Vilhena faz as vezes do jogador de vôlei sentado Renato Leite, e é retratado com o mesmo tipo de prótese usada pelo líbero.

Apesar de a campanha, idealizada pela agência África, ter recebido apoio de atletas deficientes e do Comitê Paralímpico Brasileiro, o tribunal da internet condenou a iniciativa, encampada pela revista "Vogue", para "atrair visibilidade aos Jogos".

Há uma série de críticas que podem ser feitas, mas vejo com simpatia o engajamento da revista, que também fez um editorial de moda com Cleo e Renato Leite, trazendo um tema recheado de imperfeições para o seu cenário sempre protagonizado por gente perfeitinha.

Divulgação
Cléo Pires e Paulinho Vilhena viram 'deficientes' em campanha
Paulinho Vilhena e Cléo Pires viram 'deficientes' em campanha

Sim, poderiam ter usado a imagem dos próprios atletas, mas os filmes feitos pelo CPB com atletas reais não chegaram nem perto da repercussão, ainda que negativa, de ter atores fazendo de conta que não têm perna ou braço. Cleo tem certa razão em chamar os críticos de hipócritas.

Um mundo de gente reclamando dessa campanha, mas a maioria das pessoas que apontou o dedo não vai comprar ingressos, sair de suas casas ou ligar a TV para ver atleta nadando sem braço ou jogando basquete em cadeira de rodas. A revista "Vogue" já fez mais pela Paraolimpíada do que essas pessoas e muito mais do que muitos veículos farão em suas coberturas chinfrim.

Veja, estamos todos aqui falando sobre um assunto que não faz parte de nossa rotina. Não porque somos malvados e insensíveis, mas porque ignoramos que haja tantos deficientes por aí simplesmente porque não convivemos com um.

A iniciativa da África foi a melhor? Talvez não. Mas há mais perguntas do que respostas sobre como nos relacionamos com gente que é invisível. Dia desses, Galvão Bueno cometeu a deselegância de convidar todos a ficarem em pé para ouvir o hino do Brasil, entre eles o cadeirante Fernando Fernandes, atleta de canoagem. Foi constrangedor, mas poderia ter acontecido com muita gente.

Outro dia fui corrigida por ter escrito "portador de deficiência", uma forma que já foi correta. Aparentemente, hoje, podemos dizer apenas deficiente. Já me senti desconfortável na hora de cumprimentar alguém com má formação congênita por não saber o que fazer. Aceno, seguro no braço, dou um tapa nas costas?

Ao conviver com mais deficientes numa fase profissional, aprendi uma regra simples: em caso de dúvida, pergunte. É o que menos foi feito nesse episódio. O que não faltou foi gente reclamando sem o aval dos maiores interessados.

Cansamos de ouvir que ninguém pode falar em nome de negros e de mulheres, se não for um. Por que tanta gente quer saber melhor o que pode ou não no caso dos deficientes?

Com efeito da campanha ou não, a semana começou com apenas 370 mil ingressos vendidos, mas ontem (26) as vendas bateram em 900 mil. É isso que importa.


Endereço da página:

Links no texto: