Folha de S. Paulo


Ex bom é ex morto

Antonio Guillem/Fotolia
Quando duas pessoas deixam de se falar e se ignoram na existência, certamente a coisa acabou mal
Quando duas pessoas deixam de se falar e se ignoram na existência, certamente a coisa acabou mal

Tenho uma mania talvez não muito comum, fico amiga dos meus ex. Peguete, namorado, tico-tico-no-fubá. No mínimo, mantenho uma relação cordial, café aqui, chope acolá, telefonema no aniversário, amizade de Facebook. Tem like, coraçãozinho e hahaha.

É gente com quem vivi do mais profundo amor a mais superficial relação carnal, mas com quem também passaria tardes inteiras apenas tomando vinho branco, falando sobre política turca ou como fazer horta em casa.

Então, eu me senti meio na quinta série quando um ex confessou que sua mulher não pode ouvir meu nome, muito menos ver minha cara. Nem mesmo com o novíssimo filtro Prisma, tendência nas redes sociais. Nem um jantarzinho, nem um happy hour. Ok, café da manhã. Neca. Foi quando constatei que ele conversava comigo escondido. Como um moleque de quinta série.

Ciúme. A moça tem ciúme de algo que aconteceu praticamente em outra encarnação. Quando eu era praticamente outra pessoa. Quando eu gostava de A-ha, de tomate seco e de Martini doce. Ciúme de algo que não deu certo. O que ela acha? Que sou irresistível e o marido dela um tremendo de um safado. Miga, a fila anda.

A vida está recheada de histórias assim. Como se pudéssemos riscar alguém do currículo, da mesma forma que ocultamos um estágio ruim ou um curso obsoleto. PowerPoint não precisa colocar, datilografia não dá.

As pessoas parecem seguir um protocolo pós-término. Consigo ouvir a comissária de bordo. Aperte o botão ejetar e veja seu ex desaparecer para sempre. Coloque todos os pertences do fulano numa caixa, mande pelo correio ou deixe na portaria. Delete e bloqueie de todas as redes sociais. Faça de conta que ele nunca existiu. Não esqueça de passar álcool gel nas mãos e pronto. Uma vida perfeitinha, asséptica, sem passado e sem declarações de amor a terceiros. Next.

Quando duas pessoas deixam de se falar e se ignoram na existência, certamente a coisa acabou mal. Portanto, quem cultiva relações com ex me desperta de cara confiança. Homens que têm ex-namoradas em seu círculo de amizade têm grande chance de serem ótimos parceiros. Vale o mesmo para as mulheres. Aquela ex não deveria parecer ameaça, mas garantia de que o fulano ou a fulana são pessoas minimamente decentes.

Nossa vida é um quebra-cabeças. A gente tenta uma pecinha aqui, mas se ela não se encaixa num lugar, pode dar certo em outro. Tem gente que não serve para namorar, mas se revela excelente amigo. Não adianta fingir que essas pessoas nunca existiram. Aquele papo de que "ex bom é ex morto" só vale se um dos dois fizer uma barbeiragem muito grande ou se não sobrar nenhuma afinidade. Nessa lista eu só tenho um ex por quem rogo a morte por diarreia, um marombeiro sem cérebro e um nerd assexuado.

Os outros são pessoas bacanas, decentes, divertidas, com quem dividi pizza no sofá, me perdi em estradas, dormi no ombro, passei noites em claro, dancei, bebi, ri, chorei, tive orgasmos mentais e físicos, aprendi um tantão do que é essa delícia e esse inferno que é se relacionar. Por que, raios, eu deixaria de ter contato, ainda que de vez em quando, ainda que a distância, ainda que de um jeito superficial, sobre um café ou um chope em anos bissextos, com alguém que está lá cravado com carinho na minha história?

Homens e mulheres cedem à chantagem emocional barata e rasteira. Ela é ciumenta. É demonstração de amor. Não se faz isso por amor, não tem nada a ver com ciúme. É abuso descarado. Pena de quem abana o rabo e se submete. Talvez a pessoa goste de alimentar a insegurança da outra –e sabemos que o mundo está cheio de gente assim. Ou é muito bundona, a ponto de abrir mão de parte de sua narrativa. Pior, a ponto de bancar o moleque de quinta série e manter a relação na surdina.


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