Folha de S. Paulo


O mundo é dos românticos

Uma casal na mesa ao lado pede uma garrada de vinho rosé. Garrafa de vinho rosé. Às 15h. Em plena quarta-feira. Quero levantar e pedir uma salva de palmas. Quero sentar com eles e pedir uma taça.

Eu tinha feito uma pausa no trabalho e percebi que já era meio da tarde e eu não havia almoçado. Saí andando pelo bairro e aproveitei meus dias em São Paulo para matar a vontade de um steak tartare, num dos meus restaurantes preferidos.

Sentei, fiz o pedido e abri o meu bloquinho vermelho e comecei a escrever todas as minhas pendências. Responder e-mails. Escrever mais um capítulo do livro. Terminar a pesquisa para um novo trabalho. Ligar para a assistência técnica da máquina de lavar. Marcar limpeza de pele.

Então o garçom desfila com aquela garrafa suada, reluzente, de rosé geladinho e estaciona na mesa ao lado.

Não consegui parar de prestar atenção ao casal. Mesmo sendo do tipo que não presta atenção em nada quando estou com fome, quando estou em um lugar de que gosto muito, quando não tenho o menor interesse em gente que não conheço, quando está tocando Dinah Washington.

E ela canta, lindamente, Is You Is Or Is You Ain't My Baby.

Eu não sabia quem era Dinah Washington, mas amei a música e o Shazan me salvou e eu me apaixonei.

Olho pelo espelho em nossa frente e vejo que eles não tem mais do que 26 ou 27 anos. Eles falam de Tostói e de Dostoiéviski. Planejam viajar para Espanha ou Itália em fevereiro do ano que vem. Ela divaga sobre como podem economizar. O garçom serve as duas taças. Ele dá uma garfada no tartar de atum que eles dividem. Ele cochicha algo no ouvido dela. Ela revira os olhos. Será que não gostou?

Ele diz: a gente poderia casar em julho. Eu quase grito "SIM". E essa história poderia acabar aqui. Pedidos de casamento são um ótimo final pra qualquer história. O que acontece depois do pedido, do "sim" e tudo mais já é outra história.

Estou apaixonada por aquele casal, que fala de escritores que descreveram a vida enfadonha no campo, que planeja viajar para Itália, que ouve jazz, toma rosé, se distrai com um tartar, tudo isso numa quarta-feira à tarde.

Num acesso de inveja, fechei o bloquinho, que se danem as pendências. Pedi uma taça do mesmo vinho, mandei uma mensagem pro meu marido, dizendo que o amo, comecei a ver passagens para Itália. Sempre quis casar lá, casamento na Toscana. Aposto que eles não pensaram nisso. Quis dividir a ideia.

Nossos olhos se cruzaram no espelho. Cúmplices no vinho, no tartar, nos planos de viajar para Itália e quem sabe casar. Eles não sabiam. Nem precisava.

Queria agradecer. Me livraram do bloquinho, dos compromissos adiáveis. Me acordaram para a vida que vale a pena. Aquela que acontece durante as pausas do que a gente acostumou a chamar de vida, com horários, com prazos, em que tudo está anotado num bloquinho.

Tocava Coltrane. Pedi mais uma taça. Às vezes, me esqueço, o mundo continua sendo dos românticos. E dos que bebem vinho rosé no meio de uma tarde de quarta-feira.


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