Folha de S. Paulo


Barraco digital

Ainda que seja um absurdo, uma arbitrariedade sem limite e uma jequice de iguais proporções, o episódio da derrubada do WhatsApp serviu para colocar em segundo plano o assunto mais compartilhado até o momento: o barraco virtual que se transformou um triste episódio de traição.

Comecei a ver as piadas antes mesmo de saber do que se tratava e, depois de assistir ao vídeo, não consegui entender qual era a graça em fazer graça com a desgraça. Porque tudo ali é uma desgraça.

Uma história cheia de tristezas alheias que não nos dizem respeito, mas que mostra como podemos ser tão perversos. Além de ter revelado em um episódio só como a gente ainda é impregnado de preconceito mesmo quando acha que não.

Alguém sabe o nome dos três homens que protagonizam a triste cena? Provavelmente pouca gente, mas todo mundo sabe quem é Fabiola. A moça foi catapultada ao posto de piranha-vilã da história.

Além da traição, que na cabeça chucra do brasileiro é um pecado ao qual só os homens são perdoados, porque, afinal, é da natureza do macho, Fabiola destruiu o lar de um homem casado e a vida de sua mulher e de seus filhos. Como se tivesse feito tudo sozinha.

Vi amigos compartilhando piadas, fazendo piadas, rindo de piadas erradas. Não há nada de engraçado nesse machismo rastaquera. Estamos falando de vidas. De casamentos desfeitos, de famílias despedaçadas. Tem crianças nessa história.

Vi gente aparentemente decente e de bom coração rindo do gordinho que se deu bem, afinal, ele é gordinho e ainda estava comendo a mulher do amigo. Gente tripudiando com o marido, que levou corno, claro, porque não compareceu. E de Fabiola, que ganhou status de piranha instantaneamente, porque, claro, uma mulher casada que tem um caso extraconjugal é sempre uma piranha, na tacanhice nossa de cada dia.

Vi pouquíssima gente incomodada com o fato de que uma mulher levou uns tapas e foi arrancada pelos cabelos de dentro do carro. Gente que se choca com o menino amarrado ao poste, mas talvez ache que Fabiola mereceu mesmo as bordoadas por ter traído o marido com o melhor amigo dele. Fabiola foi amarrada ao poste e só vejo gente dando risada disso.

Gente que se indigna com pornografia de vingança, mas achou "de boa" dar risada do linchamento virtual a que essas pessoas foram submetidas, ajudando a viralizar o conteúdo do vídeo, a alimentar as piadas toscas e a estimular o barraco virtual que ganha espaço na internet.

Muita gente riu e não se deu conta de que ajudou o traído a ter o que queria: vingança ao expor a mulher. Conseguiu, para meio mundo Fabiola não presta. Só consigo ter pena de todas aquelas pessoas, as quais não conhecemos, cujas histórias não sabemos. Ajudamos a acabar com a reputação dessa mulher para sempre.

Talvez fossem infelizes, talvez tivessem se apaixonado, talvez fosse só uma transa. Talvez. Talvez. Talvez. Tanto faz. Não temos o direito. Não temos o direito de rir de desgraças que são também nossas.

O mundo não é feito de santos. As pessoas traem, mentem, são traídas. A cada dia estamos de um dos lados do balcão. Essas histórias são dramáticas o suficiente quando resolvidas na intimidade. Ninguém precisa de um tribunal virtual para apontar certos, errados, putas e cornos.

A gente ajuda a estragar a vida das pessoas e depois senta à mesa de Natal e pede por um mundo mais solidário. Que hipócritas somos todos.


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