Folha de S. Paulo


Política x futebol

Bons tempos aqueles em que as brigas na internet eram apenas uma extensão dos papos de boteco. E que os papos de boteco eram apenas papos de boteco. Sem comprometimento, sem profundidade, sem drama.

Bons tempos em que as amizades só estremeciam em finais de campeonato. E depois tudo voltava a ser como antes. Aqueles tempos em que os times só eram opostos no futebol.

Aqueles em que a gente vestia a camisa por diversão e por esporte. Em que a gente entendia –achava que entendia– mais de futebol do que de política.

Bons tempos aqueles em que o noticiário esportivo falava apenas de jogos, partidas, jogadores, venda de um, compra de outro, se foi gol ou não, quem cai, quem sobe.

Bons tempos aqueles.

Bons tempos aqueles do "chupa" na janela, do "chupa" nas redes sociais. Tempos de bandeira pendurada na janela, do brasão do time no perfil da rede social.

Aqueles da ressaca do noticiário esportivo do domingo. De ver gente com a camisa do time campeão, na segunda de manhã. E na terça. E na quarta. Bons tempos de gritar "campeão" até o fim da semana.

Bons tempos aqueles.

Tempos em que o protagonismo do futebol não havia sido engolido pelas falcatruas dos cartolas. Em que os jogadores eram mais notícia do que dirigentes e políticos. Em que o dinheiro pagava apenas salários milionários e não propinas milionárias.

Aqueles em que a torcida política não tinha engolido a torcida esportiva nas redes sociais. Em que futebol não era tópico de posts minguados e efêmeros.

As redes sociais, os botecos, as festas de amigo-secreto, as confraternizações da firma andam monotemáticas e cheias de panelinhas. É panela pra um lado, é panela pra outro.

Ninguém mais se entende, ninguém mais se gosta, mesmo que torça para o mesmo time. De futebol. Mas de futebol não vale mais. Tem que torcer para o mesmo partido e para o mesmo candidato.

Nunca vi ninguém desfazer amizade por causa de jogo de bola –ainda que certamente tenha gente tacanha o suficiente para isso. Mas a política virou campeã em colocar em campos antagônicos e desirmanar amigos de longa data.

Gente que sempre vestiu a mesma camisa, chorou pelas mesmas derrotas e comemorou as mesmas vitórias. Gente que agora grita "chupa" um para o outro por causa de deputado, senador, presidente.

Que tempos tristes esses em que um campeonato é ofuscado por um escândalo. Tempos em que há um escândalo atrás do outro. Em que os assuntos eram mais amenos, a torcida, veja só, menos intolerante.

Que tempos esses em que mais nada a gente leva na esportiva. Em que a bandeira de cada um não é apenas do time, mas de um partido. Que tempos tristes esses em que os torcedores perderam a doçura ácida, a malandragem saudável, a sacanagem diplomática.

Que tempos tristes em que a gente não acredita nem no futebol e muito menos nas instituições. Tempos esses em que camisa verde e amarela só sai de casa pra ir em passeata e não pra torcer pela seleção.

Tempos em que futebol deixou de ser conversa de elevador, de portaria, do caixa do supermercado. Em que todo mundo sabe o nome da mulher do vice-presidente, mas nem imagina quem foi o artilheiro do campeonato.

Que tempos tristes esses. Que tempos tristes.


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