Folha de S. Paulo


Terceirização do talento

No dia em que venceu a nona etapa do Circuito Mundial de Surf, Gabriel Medina postou uma foto com a legenda: "Obrigado, senhor, Deus é fiel". Não é a primeira vez que divide com o divino as glórias de seus feitos.

Imagino um engenheiro ao terminar uma obra e agradecer aos céus que seus cálculos tenham sido corretos e rezar para que a construção não caia. Ou um médico contar com a mão do senhor na hora de operar um coração.

Pouco provável. Na maioria das profissões assumimos sucessos e fracassos que dependem de habilidade e profissionalismo. No máximo, penso nas pessoas que estão sempre ao meu lado nos momentos de sucesso ou fracasso. Mas o mérito é meu.

Por mais ou menos religioso que alguém seja é fraqueza de caráter jogar a responsabilidade de uma derrota ou dividir os louros com Deus, Ala, Buda. Mas no esporte estamos cansados de ver exemplos assim. Tenha gol, ponto, knock-out ou não, uma coisa é certa: é tudo na conta de Deus.

Há galerias de imagens da Copa de Mundo com atletas olhando, apontando, gesticulando aos céus, como se houvesse uma comunicação. E ainda que haja, por que alguns jogadores seriam mais ou menos abençoados do que os outros? Levar de sete a um foi algum tipo de castigo ao time do devoto Neymar?

Não se trata de ter fé ou não. Cada um reza para quem quiser. Mas admiro muito mais os atletas que não deixam dúvida a quem pertence o bônus e o ônus de suas carreiras do que em gente que entrega ao sobrenatural o placar de uma competição.

Essa terceirização do talento é muito evidente no futebol, mas acontece em todo os esportes. O tenista Michael Chang, o mais jovem vencedor de um Grand Slam, disse na época que "sem Ele, eu seria nada". Parece que Ele se esqueceu de Chang porque a carreira do americano desandou. Alguém lembra de Chang? Nem Deus.

No basquete, Hakeem Olajuwon, escolhido um dos 50 melhores jogadores da história da NBA, jogava sem água e comida no mês do Ramadã. "O paraíso não é barato", dizia. Imagine o sofrimento a que o corpo era submetido. No caso de Hakeem a devoção não foi empecilho na carreira. Mas eu pergunto: Hakeem era excepcional por seu talento ou por sua fé?

Dificilmente você verá Phelps, Messi, Federer agradecendo ao Além. Ou Nadal, que nunca se declarou ateu, mas já disse que "acreditar em Deus é algo muito difícil para ele". Muito menos Fernando Alonso, ateu de carteirinha. Todos esportistas excepcionais.

A vaidade de Cristiano Ronaldo, por exemplo, não fica evidente apenas pelas sobrancelhas bem feitas. A cada vitória, a cada gol, a postura é de um profissional que sabe por que custa tão caro: ele faz questão de mostrar ao mundo de que não foi graças a Deus, não. Foi graças a ele.

Medina, Neymar e companhia poderiam seguir o exemplo e entender de uma vez por todas que não são abençoados, são talentosos.


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