Folha de S. Paulo


Só tem graça se a gente fica sem graça

Acreditava que com o tempo tudo muda. A gente deixa de ficar vermelha, de morder os lábios, de comer as unhas, de suar na bunda. Acreditava que era questão de idade parar de tremer, de morrer de vergonha, de dor de barriga, de não encontrar palavras, de ficar sem graça.

Achava que um belo dia todos os grandes pavores e esses que eu chamo de pequenos sentimentos se diluiriam em experiências, em frustrações, em cagadas, em decepções. Até que chega uma hora em que a gente praticamente não se comove ou não se abala facilmente.

O tempo passou, a idade chegou e na maioria das vezes continuo me sentindo como se estivesse dentro de uma sala de cinema prestes a dar o primeiro beijo na boca. Fico nervosa, sinto vergonha, me sinto desconfortável e morro de sem-gracisse.

Enquanto isso tem gente com metade da idade, de experiência, de acertos, de tropeços, que desfila pela vida como se tivesse mamado Rivotril. Gente que não viveu muito, mas age, fala e parece que já nasceu vivido.

Sempre achei uma habilidade tremenda, mais do que falar holandês, mexer no Excel ou andar de skate, entrar em lugares apinhados de gente e não se intimidar quando todo mundo olha. Eu quero morrer.

Tenho inveja de quem fala em público, quem tem sempre uma resposta, quem não leva susto, quem não se surpreende. Gente que se comporta como se fosse um canivete suíço, cheio de funções e soluções para os pequenos e grandes medos da vida.

Imagino que seja bom ter o controle de tudo, anestesiar os pequenos sentimentos, mas também deve ser muito sem graça perder a capacidade de ficar sem graça, de se abalar, de não saber o que dizer.

Muita gente parece não sofrer mais por nada. Como se tivesse caído de moda. Alguém ainda vai decretar que sofrer é muito 1990 e que ninguém mais faz isso. Fico besta de ver quem leva chifre e levanta da cama no dia seguinte e vai malhar. Não consigo nem tomar banho quando fico triste.

A gente cresce ouvindo que tem que ter segurança, que precisa ter autoestima, que não pode ser vacilão. Eu cada vez mais me convenço que até vale a pena fingir que é tudo isso em algumas ocasiões. Eu tento. Nem sempre dá certo.

No final do ano passado, suei tanto numa reunião de trabalho, que deixei o desenho da minha bunda numa cadeira de couro ecológico porque recebi uma proposta inesperada. Pior, tenho certeza de que o cara que tinha acabado de me oferecer trabalho viu a cadeira melada com o meu nervoso.

Minhas bochechas teimam em gritar para o mundo quando fico sem graça ou morro de vergonha. E isso pode acontecer quando me dou conta que tem um fulano me olhando ou se tomo um caldo e saio da água com a parte de cima do biquíni na cintura.

Meu lábios tremem quando tenho que falar para pessoas que não conheço. Uma só já é suficiente para fazer meu estômago se comportar como se estivesse numa máquina de lavar roupa.

Há quem veja nisso falta de maturidade, ingenuidade, insegurança. Pode ser. Eu prefiro acreditar –e sei que pode ser uma doce ilusão– que a falta de habilidade de lidar com a vida torne a vida menos óbvia e mais surpreendente. No fundo, acho que só tem graça mesmo se a gente ainda fica sem graça.


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