Folha de S. Paulo


Sou uma vaca que tosse

Campanhas existem para beneficiar pessoas, para que vivam melhor e com mais qualidade. Não deveriam ser baseadas em crenças ou experiências pessoais com a finalidade de interferir na vida alheia. Talvez por isso eu tenha ficado tão chocada com uma contra o aborto, lançada no Facebook, que desafiava as mães a postar uma foto da época que estavam grávidas. Tipo o desafio do balde. Mas dessa vez pensando no seu próprio umbigo. Ou na própria barriga.

Eu entendo que muitas mulheres não fariam um aborto em hipótese alguma, mas não entendo que uma mulher se oponha e entre numa campanha para impedir o direito de outra fazer o que quiser com o próprio corpo. Pior ainda, que apoie a criminalização do aborto, que ache OK que mulheres sejam tratadas como criminosas por isso.

O que só confirma um pensamento que tenho de que um dos maiores problemas na vida de uma mulher são as outras mulheres. Quanta hipocrisia. Quanta desunião. Quanta gente esfregando foto de barriga - umas bem cafonas e com legendas piegas - e vindo com discursos limpinhos e politicamente corretos. Mais amor, mulheres. Mais compreensão. Mais simpatia pelas dores e infortúnios da próxima.

A falta de informação dessas defensoras da família, tradição e propriedade é gritante. Elas repetem ladainhas vazias. Emitem opiniões ignorando totalmente as razões que levam uma mulher a interromper uma gravidez.

Para elas, o aborto é crime e ponto. Para elas, as mulheres que abortam são criminosas e assassinas. Para elas, a questão é simples, há várias formas de prevenir uma gravidez. Para elas, quem engravida sem querer é irresponsável. Para elas, as mulheres que abortam fazem disso um método anticoncepcional.

Pior. Para elas, as pessoas que apoiam a descriminalização, incentivam o aborto como forma de prevenção. Para elas, se o aborto for legalizado, ninguém mais vai se prevenir. Então, tá.

Calma, que nem cheguei na parte que mistura religião. Porque, claro, o Deus delas é bom e misericordioso. Apenas com elas, imagino. Mas um Deus malvado e punitivo por dar um filho a uma mulher que não o deseja naquele momento. O que provavelmente elas não saibam, é que a maioria das mulheres que engravida tem um perfil muito diferente da jovem, inconsequente e promíscua que habita suas cabecinhas.

É óbvio que a mulher que engravida sem querer é vagabunda ou irresponsável. Ou as duas coisas. Certo? Errado. Desculpe destruir seus castelos de uma sociedade cor de rosa e feliz. As estatísticas mostram que o maior número de abortos acontece entre mulheres casadas, com filhos e cristãs. Não sou em quem está dizendo. É a Universidade de Brasília.

Todas essas ideias propagadas pelas do contra são baseadas em opiniões rasas e crenças individuais.

A questão é: aborto é uma questão de saúde pública. Defender que o aborto continue sendo crime ou fingir que as mulheres vão parar de fazer só porque é crime não fará com que elas parem de abortar. Só será eficiente para que elas continuem morrendo.

Legalizar a sua prática seria uma das formas de reforçar as políticas públicas para prevenir uma gravidez indesejada entre mulheres pobres, justamente uma grande parte que precisa de orientação, e certamente o tipo de mulher ignorada por aquelas que ficam desfilando suas barrigas no Facebook, com hashtag 'sou contra o aborto'.

O aborto não deveria ser uma questão de opinião, nem de crença ou ideologia. É menos importante o que as pessoas acham individualmente do que o direito coletivo. Essas mulheres deveriam pegar seus achismos e se recolher. Quem sabe serem solidárias e ajudar suas irmãs de fé, que engrossam as estatísticas.

Apesar dos números prefiro pensar que a mulher que faz aborto não tem cara nem perfil. Pode ser qualquer uma. E por razões diversas. Gente que não tem condição emocional ou financeira de cuidar de uma criança, vítimas de violência doméstica, as que temem perder seu emprego e até mulheres que são obrigada pelos maridos a abortar.

Apontar o dedo não agrega nada à discussão, até porque quase sempre os argumentos são baseados em conceitos religiosos e moralistas. E aí eu chego num outro ponto, que o Estado, laico na teoria, não poderia pautar suas decisões em crenças pessoais de políticos.

Na semana passada, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, disse que não vai colocar o tema do aborto em pauta nem que a vaca tussa. Baseado em que? Porque ele é evangélico? E desde quando ele pode misturar sua vida pessoal aos interesses públicos?

Eu nunca abortei. Não estou escrevendo esse texto em benefício próprio. Assim como as leis não deveriam ser feitas sem a independência que exigem. Apenas gostaria de ver garantido a todas as mulheres o direito ao aborto, independentemente da razão. Se for necessário, pode me chamar de vaca, porque já comecei a tossir. Se precisar, posso latir também. E não vou parar mais.


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