Folha de S. Paulo


Não sei dizer não para a vida

O celular apita: topa um choppinho? Estou atolada em trabalho, cheia de prazos para cumprir, com a agenda lotada de pendências. Talvez, e só talvez, consiga entregar tudo antes do prazo. Mas só ouço a voz do diabinho, e respondo: claro, que horas e onde? Esqueço tudo, quero botar o papo em dia e só penso na garganta dando um gole gelado.

Amanhã tem uma press trip para San Ignacio, no Uruguai. É a praia dos descolados, Punta é passado. Teremos aulas de coquetelaria e de ceviche, degustação de vinho, cavalgadas na lagoa, passeio de bike pela orla. Vou perder ioga e fisioterapia. Mando o passaporte por e-mail ou Whatsapp?

Ivonilde abre a porta do escritório: preciso de um cabide para esta camisa. Largo a pesquisa pelo meio, o e-mail mal respondido, a coluna pela metade. Por causa de um cabide, decido que o guarda-roupa inteiro precisa ser organizado. Tem muita coisa aqui. Ninguém precisa de uma boina. Este casaco só usava naquele frio de São Paulo. Vou aproveitar e organizar os sapatos também.

Corte só as pontas. Só as pontinhas mesmo. Tenho uma faca dentro da bolsa contra cabeleireiros que cortam mais do que as pontas. A fulana sorri. Diz que meu cabelo está ressecado, pontas duplas, sem queratina, que um banho de manteiga de carité com luzes ionizadas vai deixar tipo capa de revista. Me pego dizendo: demora? Não, rapidinho. Só saio de lá quatro horas depois, com a vida atrasada, e os cabelos tipo capa de revista do bairro.

Sou do tipo que sempre fica mais um pouquinho quando convidam. Que topa as quatro saideiras. Espero o trânsito melhorar só para alongar as conversas. Aperto o botão da soneca cinco vezes. Vejo mais dois episódios de Homeland. Leio até tarde quando tenho que acordar cedo. Aceito convite pra inauguração de bar ou nail bar. Não sei dizer não. Nem para os outros nem para mim. Não aguento um 'vamo'. Sempre acho que dá pra deixar pra depois do almoço, pro fim da tarde, pra segunda-feira. Planejo a vida como se o dia tivesse 30 horas e o ano 500 dias.

Minha listinha de pendências está sempre no vermelho. Quero fazer tudo. Se digo não, tenho a sensação que estou perdendo alguma coisa. Sei que já teria escrito um livro, meu site estaria pronto, além de mais dois ou três projetos. Mas tem sempre alguma coisa, se não mais importante, mais interessante, mais divertida, mais descompromissada para fazer. Sim, eu deveria ser mais adulta, mais pontual, mais responsável. Mas vira e mexe, lá se vai a minha boa intenção de fazer tudo dentro dos conformes, de ter uma rotina mais rígida.

Posso ser acusada de tudo, menos de que não aproveitei a vida.


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