Folha de S. Paulo


Você é sonhador ou realista?

Feche os olhos. Esvazie sua mente. Respire.

Tenho a sensação de que o ar não desceu direito. Me lembro de que a ressonância magnética que fiz há dois meses deve ter derretido no banco de trás do carro nesta primavera carioca. Este soquinho pra respirar deve ter algo a ver com a dor na lombar. Desmarquei o médico de novo. Paguei a natação e não fui. Nunca mais comi chia nem amaranto.

Não tem dado tempo. Minha lista de pendências tem atualizações diárias. Sempre encontro mais um par de sapato precisando de sapateiro. Tenho batido ponto lá toda semana. Já estão me fazendo fiado. Um dia desses aceitei até o cafezinho. Comecei a sentir falta do cheiro de cola de sapateiro. Ainda tem as cortinas na lavanderia, preciso ligar para o despachante, decidir o que fazer com as moedas dos dois porquinhos que estão cheios. O editor quer saber do livro. Mas consegui plantar a muda de lembrança do casamento da Gabi e ela está virando uma arvorezinha. Agora falta o livro. E o filho.

Onde eu estava mesmo? Ah, sim, tentando não pensar em nada.

Eu tento, mas lembro da Julia Roberts que também quer aprender a meditar em 'Comer, Rezar, Amar'. Vi o filme, li o livro e baixei a trilha sonora. Fiz uma viagem parecida com a da personagem, na mesma época.

Poderia ter escrito essa história, casado com o Javier Bardem, em Bali, e ficado rica. Quando me dei conta estava batendo cartão de ponto no trabalho. Onde eu estava mesmo? Com Julia Roberts. Enquanto ela se distrai pensando na decoração da sala de meditação, eu já me perdi em cinco assuntos.

Selecione seus pensamentos, assim como seleciona suas roupas, alguém aconselha no filme. Ferrou. Troco dez vezes de roupa antes de sair de casa e sempre fico com a sensação de que escolhi alguma coisa quente demais, fresca demais, curta demais, careta demais, com lurex demais.

Sempre foi assim. Faço tudo certinho. Detesto o cheiro, mas acendo incenso. Toca um mantra, que um amigo me trouxe de um retiro. Logo penso nos porquinhos cheios de moedas. E na minha cabeça cheia de pensamentos.

Então, ontem, acordei, peguei o regador e fui para a varanda tentar salvar o manjericão, o alecrim, a pimenta e a arruda, que teimam em querer morrer. A laranjinha da Gabi resiste. Fiquei um tempo só olhando a água escorrer pela terra. Tenho certeza de que vi as folhas se mexerem. Senti uma felicidade boba. Me senti boba, meio ridícula, mas não tive pressa em deixar de ser boba ou ridícula.

Não vi o tempo passar, acho que dormi sentada com o regador na mão. Talvez tenha meditado sem querer. Não doeu quando respirei, não pensei em nada. Pela primeira vez.

Não sei que nome tem isso. Paz, calma, equilíbrio. Pode ter sido só sono. Mas quero acreditar que finalmente não tenho mais pressa e por isso a cabeça parou. Não tem ninguém me esperando. Não tem nenhum lugar para chegar.

Cansei de fazer tudo ao mesmo tempo, de querer estar em todos os lugares, de saber tudo sobre tudo. Eu sei, pode ter sido só sono e um café acabe com toda essa maturidade repentina. Pode ser problema na tireoide.

Quando saí do transe, lembrei da lavanderia, do sapateiro, das férias, da minha lista interminável de pendências que viram desculpas, de desculpas que não tem a menor importância. Percebi que hoje só quero mesmo que a laranjinha da Gabi não morra, quero escrever o tal livro e quero ter um filho.

Mentirinha.

Tenho sonhos, tenho vontades, tenho delírios, tenho fome ainda de muita coisa, tenho um querer sem fim. Mas de uma hora para outra tudo começou a parecer mais real e menos impossível. Talvez chegue uma hora que a gente se torne pessoas mais possíveis. Talvez chegue o dia em que a gente possa sonhar de um jeito mais realista. Não tenho mais medo de descansar os pés numa pantufa macia ou de puxar aos poucos o freio de mão dessa minha vida sempre meio desgovernada. Eu só não quero mesmo é perder a esperança. Realista, mas com esperança. Uma realista esperançosa, como diria Suassuna.


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