Folha de S. Paulo


O dia que viramos senhora

Estou no supermercado pagando a compra quando alguém se oferece: "levo no carro para a senhora." Nem respondi. Nem olhei. Certamente não era comigo. Não sou senhora, nunca fui. E quando já estava dando no pé para evitar o inevitável, o empacotador pegou as sacolas da minha mão. A tal senhora era eu.

Sabemos que esse dia vai chegar, mas não hoje, não ainda. É cedo pra senhora.

Foi o chefe quem mandou. Chefes decidiram que todo mundo com mais de 20 deve ser chamado de senhor e senhora. Chefes antiquados, chefes que não sabem como agradar a clientela, chefes que não se tocam que senhora é minha avó. E quem tem avó não tem idade nem aparência para ser senhora. Sempre foi dessa forma.

Está lá, senhorita, no cadastro da loja. E no perfil da TAM, no banco de dados da Receita Federal. Também não uso aliança. Sem aliança ainda é senhorita. Funciona assim aqui, em Minnesota, em La Rochelle, no mundo todo.

Por aí ainda sou miss, mademoseille, signorina, fräulein. Então, não me venha com senhora, até para efeitos legais ainda não ganhei esse upgrade, que de up não tem nada. É ladeira abaixo mesmo.

Falta respeito pra esse pessoal. Onde já se viu me chamar de um jeito que nem passa na minha cabeça?! Me deixe. Me erre. Senhora está no céu. Senhora é a senhora sua mãe.

O que aconteceu com moça, colega, linda, boneca? Ainda ontem, no posto de gasolina o frentista me veio com uma dessas. Na hora não gostei da informalidade. Agora me soou muito melhor. Gata garota, florzinha, belezinha. Até que é simpático.

O que será daqui pra frente? Cabelo na altura do ombro. Adeus minissaias, biquínis e tops. Proíbem tudo. Não fica bem numa mulher mais velha. Depois disso vem o que? Tia. Patroa. Dona. Mulher invisível. Uma amiga me disse que depois de uma idade ninguém olha mais pra ela. Tem saudade de ser paquerada. Desde o dia que virou senhora, nunca mais.

Vai para lista das minhas efemérides pessoais. Estava lá na minha agenda o dia do primeiro sutiã. Quando beijei na boca. Virei caloura. Jornalista. Juntei. Separei. Me apaixonei de novo. Meu cachorro morreu. Operei o joelho.

Agora tem também o dia que virei senhora.

Eu sei que esse encontro com a minha senhora é inevitável. A ruga que hoje grita no espelho não estava ali ontem. Um fiasco aquele gel do mar morto com placenta de avestruz. Deve ser o travesseiro novo. Amassa o rosto e as rugas aparecem sem parar. Vou trocar. Pela terceira vez.

Tomo uma taça de vinho a mais e demoro três dias pra me recuperar da ressaca. Ontem eu virava a noite, doses de uísque, tomava banho e ia trabalhar. Se faço isso hoje, não duro até a hora do almoço.

É como se agora eu andasse com uma carteirinha de "senhora" pendurada no pescoço. É o porteiro, o taxista, a manicure, o médico. E se o médico chamou de senhora é caminho sem volta pra senhorita. A notícia se espalha.

A patrulha do politicamente correto dirá que não sei envelhecer com dignidade. Que belo exemplo você está dando, vão gritar. Dane-se. Não tenho maturidade para ficar mais velha. Estou em busca disso. Até lá, a senhora pode esperar. Sou senhorita de alma. E dizem que a alma não envelhece. Estou fechada com minha alma. Só viro senhora quando quiser.


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