Folha de S. Paulo


Encontros e desencontros

Não conheço a Camila. Mas ela me parece inteligente, irônica e corajosa. Sempre que dou de cara com um post dela paro para ler. Nossa relação já dura bem mais de um ano e eu continuo sem saber quase nada sobre ela, mas de uma certa forma é como se eu a conhecesse. É papo reto, direto, de uma sinceridade acachapante, torta, às vezes. Então, ela é meiga, sentimental, piegas.

Não sei onde ela estudou, se tem trabalho fixo ou se faz bico. Não sei se ela é casada ou namora. Sei que ela tem alguém e arrisco dizer que colocou nele algum apelido ridículo. Começou com ironia e depois pegou.

Também não consegui descobrir se ela mora em Niterói ou no Leblon. Pode ser que more nos dois lugares. Ou só pegue a balsa pra visitar uma tia aposentada. Não sei se tem carro ou se anda de metrô, de ônibus ou de bicicleta. Se é contra o aborto, a lei de cotas e a pena de morte.

Não sei se é alta o baixa, se prefere açúcar ou adoçante, se tem um par de Crocs, que ela usa com meias de bolinha quando está em casa. Outro dia falou sobre ter frequentado muito baile funk. Nossa amizade virtual deu uma balançada. Funk, não. Quase comentei, mas nem a conheço direito, apesar da afinidade virtual. Me distraí comprando capinhas de celular na internet. Encho carrinhos em lojas de e-commerce para me distrair e depois
cancelo tudo. Camila faz a mesma coisa, descobri num post dela.

Já tive vontade de chamar a Camila no chat, mas sempre desisto. Já tive vontade de conversar para que ela desse um jeito num mimimi momentâneo que se abateu sobre mim. Mas morro de preguiça de gente que não conheço que vem com papo furado, e não dá pra fazer com os outros o que eu mesma acho insuportável. Então, continuei com nossa amizade platônica.

Sempre acho que é a distância a mãe de todos os encontros que acabam em desencontros. Mas os desencontros acontecem bem debaixo do nosso nariz.

Dou de cara com um dos meus vizinhos no elevador. Dezenove andares de silêncio e desconforto. Prefiro o incômodo a falar sobre o tempo - o único assunto mais ou menos civilizado e perfeitamente curto para uma viagem de elevador.

Mas até isso eu evito porque não tenho medida. Ou fico muda ou fico amiga em três segundo. Logo vou falar que esse calor é insuportável, que não dá trégua nem no inverno e já me vejo contando que por causa desse veranico acordei com as coxas cobertas de alguma coisa parecida com alergia. Das duas uma: ou deixo o vizinho constrangido ou saio do elevador com uma receita caseira para minha pereba.

Como evito vizinhos, papos de elevador e receitas caseiras, não conheço ninguém que mora no prédio, nem mesmo no meu andar.

Mas sei que meu vizinho de porta já é avô ou bisavô. É ele quem leva a neta todos os dias à escola. Ele parece ser amoroso e dedicado, bem avô mesmo. A garota está sempre sorrindo e anda de mãos dadas com ele, que carrega a mochila rosa dela. A avó ou bisavó eu vejo pouco. Ela quase nunca me cumprimenta. Talvez seja eu a não cumprimentá-la. Estou sempre mexendo no celular, ocupada com coisas totalmente desimportantes para
falar com alguém que mora do outro lado da parede da minha sala.

Já faz mais de um ano que moro aqui e estamos empacados no bom dia e no boa tarde. Nunca tem boa noite porque ele nunca sai à noite. Deve ser por causa da idade. Preconceito meu. Como minha avó não sai quase nunca à noite, acho que todos os avós também não saem de casa depois que escurece.

Uma manhã dei de cara com ele na ciclovia que tem na rua. Ele sorriu quando passou por mim. De onde mesmo conheço essa pessoa? O avô amoroso que mora na porta ao lado. Não sei seu nome, não sei nada dele. Não sei se a neta ou bisneta mora com eles, se ele gosta desse calor insuportável e sem tem perebas quando esquenta muito.

Há dias que não o vejo. Pode ter saído de férias. Talvez nossos horários estejam diferentes. Tive vontade de oferecer a eles metade do bolo de laranja que fiz para o café da manhã e que certamente vai mofar no balcão da cozinha. Não sei se gostam. Nunca bati na porta de ninguém. Ele pode ter morrido e eu nunca mais poderei retribuir o sorriso do dia da caminhada. Posso mostrar o tênis que comprei. Pronador, não incomoda nada. Posso dar a receita do bolo de laranja. Talvez ele precise de um tênis, talvez goste do bolo. Talvez eu nunca saiba.

Mandei mensagem para a Camila. Convidei para um chopp e para a gente falar mal das pessoas - ela entendeu a brincadeira, mesmo sem a gente se conhecer. Não quero perder a Camila de vista, nem outras pessoas legais que eu acabo encontrando pela vida e que poderiam me dar uma receita caseira para as minhas perebas ou ganhar metade do meu bolo de laranja.

A vida tem desencontros demais e a gente nem percebe.


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