Folha de S. Paulo


Mente vazia, oficina do diabo

Ainda não entendi o recado de hoje, me disse um amigo, depois de um daqueles dias que a vida te dá uma rasteira. Pensei que a gente quase nunca para pra pensar nas experiências que temos. Nem nas porradas que levamos e muito menos no trivial invariável da nossa vida café com leite.

A gente acorda, escova os dentes, toma um suco verde, come um iogurte com chia, liga a Nespresso enquanto lê as notícias no Facebook, passa óleo de argan no cabelo. Veste uma calça skinny. Dirige mexendo no Whatsapp.Trabalha. Reclama da vida. Pede o prato light no almoço. Manda vídeos de sacanagem no Whatsapp. Trabalha. Volta pra casa - dirigindo e mexendo no Whatsapp. Corre 10 quilômetros. Posta no Facebook. Toma sopa de abóbora com gengibre e amaranto. Vê Breaking Bad. Posta no Facebook que está órfão de Breaking Bad. Bebe uma garrafa de vinho. Manda um Whatsapp cheio de amor. Dorme. Acorda de ressaca - física e moral. Se arrepende. E um dia morre.

Vivemos como se fosse pra sempre. Ou como se fosse um ensaio. Mas a coisa toda é pra valer todo dia. A gente faz de conta que não. É difícil quando a gente para, se ouve, se percebe e se encara. É assim também com a relação que temos com o mundo que continua girando enquanto a gente vive.

Se o jogo está a favor, deixa a vida me levar. Liga no automático e esquece que chega a hora do travesseiro, do 'vamo vê'. Só então percebe que se deixa levar até quando é pro ralo, pro fundo do poço, pra putaqueopariu.

O mundo é bom, Sebastião. Mas se a gente não olha em volta, vem tiro, porrada e bomba de todos os lados. Não tem dó nem piedade. E o rolo compressor detonando sonho e ingenuidade. Para tudo, que merda é essa? O que eu estou tirando disso tudo? É um saco.

Descobri levando muita rasteira que preciso ficar sozinha e quieta para conseguir entender os recados que a vida me manda. A gente não se ouve porque tem sempre barulho em volta. A gente se rodeia de gente e de vida para não ver o que acontece ao redor. Nem percebe que a vida tá de sacanagem enquanto a gente recicla o lixo. Mas ela só nos respeita quando aprendemos que tudo tem limite. Eu tenho, você tem, todo mundo tem. Mas a gente não sabe exatamente onde ele fica - porque não para e se pergunta.

Detesto mimimi. Quando reclamo, passo o trator. Fiz mestrado em sofrer dores durante 24 horas, uma semana ou um mês, dependendo do tamanho da minha expectativa ou da filhadaputagem dos outros. Mas nunca fiquei velando a dor.

Não sei qual o recado de hoje.

Aqui se faz aqui se paga. A vida é curta. Nada é para sempre. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Mente vazia, oficina do diabo. Gato escaldado tem medo de água fria. Não sei.

Só sei que hoje eu preciso ficar quieta. As respostas chegam. Os limites começam a ficar cada vez mais claros. A gente passa a se ouvir e se entender com mais facilidade.

Não sei qual o recado de hoje. Só consigo pensar que nada como um dia após o outro.


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