Folha de S. Paulo


O esporte precisa quebrar o silêncio e falar de assédio sexual

Eu tenho uma história, minhas amigas também têm, e como vimos na última semana na campanha #primeiroassedio, milhares de mulheres no Brasil compartilham a mesma experiência: sofreram algum tipo de assédio sexual, principalmente na infância, muitos cometidos por pessoas em quem confiavam.

No esporte não é diferente. E se os atletas se engajassem em um movimento como este, revelariam uma face triste, bem distante do glamour e da alegria das medalhas.

As esportistas ocupam posição duplamente vulnerável. Seus corpos são suas ferramentas de trabalho e desde cedo estão expostos. Toques para corrigir movimentos, fotos reveladoras, mudanças de roupa e banhos na frente dos colegas são naturais. É difícil para quem está crescendo e ainda descobrindo o mundo reconhecer contatos ou olhares maliciosos.

Mais difícil ainda é conseguir dizer basta. Técnicos e dirigentes exercem papel de autoridade para as atletas. E muitas vezes também ocupam o lugar da família, passam mais tempo com elas do que seus pais. Como acreditar que eles queiram lhe fazer mal? Como confrontá-los quando você tem de obedecer?

E não são só as meninas que passam por isso. Garotos também são vítimas de assédio, principalmente na base do futebol. Muitos não falam sobre o que ocorre com medo de perderem a única chance de "ser alguém na vida". Já adultos, têm vergonha de contar o que viveram.

Nem quando casos de abuso a menores vêm à tona o esporte brasileiro se mexe. A nadadora Joanna Maranhão, por exemplo, afirmou ter sido molestada por um treinador na infância –o caso já havia prescrito quando ela contou a história.

À época, muito se discutiu sobre a veracidade de sua denúncia. Mas, no meio esportivo, não se falou em investigação, em campanhas para evitar assédios e abusos, em acolhimento de atletas que passam por esse trauma. O que se ouviu foi um ruidoso silêncio. Que ainda ecoa. Atletas não têm coragem de denunciar –Joanna recebeu ligações de meninas com histórias semelhantes, mas que tinham medo–, e os cartolas preferem que o silêncio continue, varrem o assunto para baixo do tapete.

Na maior potência esportiva do planeta, os casos são tratados de outra forma. Meio à força, é verdade. Mas diante de uma revelação, as autoridades dos EUA se mexem.

A principal rival da judoca Mayra Aguiar, candidata ao ouro na Rio-2016, é um exemplo. Kayla Harrison foi molestada por um ex-técnico a partir dos 13 anos e só teve coragem de se abrir aos 17. Foi acolhida e se tornou porta-voz de atletas que passaram pelo mesmo problema. Casos como o dela levaram o Comitê Olímpico dos EUA a criar o programa Safe Sport para prevenir casos de abuso. A natação do país, após muita pressão, baniu mais de 40 técnicos que molestavam nadadores.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente pede que as categorias de base dos clubes tenham psicólogo. É muito pouco. Segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, no primeiro semestre deste ano houve 9.206 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no país.

Enquanto os dirigentes e as autoridades seguirem fingindo que assédio no esporte não existe, os atletas continuarão vulneráveis. É preciso coragem para quebrar o silêncio. A vergonha não está na vítima, está em quem assedia.


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