Folha de S. Paulo


Vizinhos sul-americanos diminuem dependência do Brasil

"O Brasil é o fulcro". Isso é o que defendia o Council on Foreign Relations, principal think-tank dos EUA em assuntos globais, quando analisava a América do Sul no início da década passada.

Num dos mais eloquentes textos já produzidos por observadores internacionais sobre a importância do Brasil, o "Council" convidava Washington a priorizar relações com Brasília.

Luciana Granovsky/Télam/Xinhua
Bandeiras da Argentina, da Bolívia e do Brasil lado a lado na sede da Conmebol, em Luque (Paraguai)
Bandeiras da Argentina, da Bolívia e do Brasil lado a lado na sede da Conmebol, em Luque (Paraguai)

"O Brasil é importante demais em tudo que pode acontecer na América do Sul para que os EUA mantenham simplesmente uma política de 'negligência benigna' ('benign neglect')".

Tal documento —intitulado "Uma Carta ao Presidente e um Memorando sobre a Política dos EUA para o Brasil"— jamais conseguiu a resposta em termos de cooperação bilateral que o potencial das duas maiores democracias do Ocidente projeta. Muito disso, claro, não foi culpa do Brasil.

Essa questão da centralidade do Brasil em assuntos sul-americanos é óbvia —e antiga. O Brasil é da região o maior ator em economia, território e população.

Não estranha assim que nossos vizinhos —e nós próprios— tenhamos nos acostumados à imagem do Brasil como grande proponente de iniciativas regionais ou como fator determinante da "sorte" do subcontinente. Ou seja, para onde apontasse a "liderança" brasileira àquela direção seguiria a América do Sul.

Estivesse economicamente bem o Brasil, benéficos seriam os efeitos multiplicadores para toda a região. Se em dificuldades, todas amargariam a "velocidade de comboio" —aquela estabelecida pelo veículo mais lento— ditada pela baixo desempenho do Brasil.

Há meros sete anos, quando um popularíssimo Lula elegia sua sucessora, o quadro acima parecia confirmar-se. Mercosul, Unasul, um modelo de capitalismo de estado capaz de entregar elevado crescimento, inclusão social e cooperação sul-americana —todos estas dimensões reforçavam duas noções. Primeira, na América do Sul, a liderança brasileira é natural. Segunda, o que é bom para o Brasil é bom para a região.

Dinâmicas recentes, contudo, têm posta à prova muitas dessas certezas sul-americanas. Ninguém mais na região acha que o Brasil dispõe de "fórmula mágica" de crescimento com inclusão social que possa ser alastrada para a vizinhança mediante geometrias de integração propostas por Brasília.

O Mercosul tem de ser reinventado. A Unasul e sua visão de mundo estão relegadas à irrelevância. A expansão automática pela América do Sul de nossas "campeãs nacionais", na ausência da coincidência ideológica que fomentou negócios na região até há pouco, encontra-se barrada por limites orçamentários, empresariais e jurídicos.

Foi-se a época de uma liderança "inercial" do Brasil em sua região. Em temas como paz na Colômbia , crise na Venezuela , investimentos na Argentina ou comércio exterior no Paraguai e Uruguai, o protagonismo brasileiro terá de ser reconquistado.

Em termos de estratégia de inserção internacional, Chile, Peru e Colômbia fazem opção preferencial pelo Pacífico. E tal escolha só não é mais pronunciada em virtude da "exceção Trump", que promove a autoflagelação dos interesses norte-americanos na Ásia-Pacífico e atrasa uma maior cooperação entre os signatários originais do TPP.

E, claro, ninguém almeja reproduzir a ampla latitude entre ideologia e matemática que permitiu a emergência da "nova matriz econômica" e seus efeitos devastadores sobre contas públicas, inflação e emprego. Mesmo a Bolívia de Evo Morales, cuja empatia com as forças que chefiaram o Palácio do Planalto de 2003 a 2015 era manifesta, jamais se afastou de ortodoxia macroeconômica.

Tudo isso, claro, se dá em conjuntura em que também os EUA têm seu peso relativo apequenado na região e a China expande seu perfil como parceira de comércio e fonte exportadora de capital.

Esse vácuo deixado pelo momento brasileiro tem sido aproveitado por nossos vizinhos de maneiras diversas. Destaco aqui apenas duas.

A Argentina de Macri vem dando passos largos rumo à estabilidade e a confiança. O país encontra-se gerido por executivos competentes e que, ainda com enormes obstáculos, se afastam de experimentalismos macroeconômicos e da dupla nacionalismo-protecionismo.

Essa onda positiva ganhou força nas eleições de domingo passado e aumentam o perfil argentino na região e no mundo. Há pouco improvável, a Argentina tem conseguido recentemente converter-se numa fonte de boas notícias.

Outro fenômeno que merece especial referência é o Paraguai, que trafega na contramão do Brasil. Enquanto amargamos período mais longo e profundo de dificuldades econômicas, o Paraguai cresceu de 2011 a 2016 média anual de 4,5%. Deverá fechar 2017 com inflação de 4,1%, desemprego em 5,5% e 3,6% de expansão do PIB, segundo o FMI.

No caso paraguaio, o contraponto com o Brasil é particularmente perverso. Já que a estrutura tributária do Brasil é pesada e complexa, o Paraguai abaixou alíquotas e simplificou impostos. Como a legislação trabalhista brasileira é uma armadilha para empregador e empregado, o Paraguai a modernizou.

Como o Brasil tornou-se antagonista à produção, o Paraguai a abraçou. E parte determinante do êxito econômico paraguaio recente se dá em sua crescente industrialização.

O Paraguai, assim, alimenta-se do ambiente hostil aos negócios que prevalece no Brasil. Oferece alternativa aos próprios empreendedores brasileiros que, ademais das dificuldades internas, passam a arbitrar custos de outsourcing cada vez mais elevados na China como favoráveis à produção no Paraguai.

Esse conjunto de fenômenos evidencia que a América do Sul está menos "brasildependente" —e de que não é mais estritamente necessário que a maré brasileira se eleve para que o barco de todos os países da região também suba.

O melhor caminho para que o Brasil retome sua projeção externa, também em sua circunstância geográfica, é pôr urgentemente sua casa político-econômica em ordem.


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