Folha de S. Paulo


Haverá uma 'Doutrina Trump'?

Timothy A. Clary - 9.jan.2017/AFP
President-elect Donald Trump speaks to the media at Trump Tower January 9, 2017 in New York. / AFP PHOTO / TIMOTHY A. CLARY ORG XMIT: TC075
O presidente eleito, Donald Trump, fala à imprensa na Trump Tower

Muitas diplomacias e políticas de defesa se orientam com base em "manuais do usuário" —atualizados de tempos em tempos ao sabor das preferências dos mandatários e das exigências da conjuntura.

No caso dos EUA, tais "manuais" são sofisticadamente construídos e implementados. No mais das vezes, recebem o nome de "doutrina". Assim foi com a Doutrina Monroe que, no século 19, percebia a Europa como fonte dos males do mundo e, portanto, caberia aos EUA arregimentar um grande poderio naval que transformasse o Atlântico num "lago americano".

Já no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o brilhante estrategista George Frost Kennan, ao identificar traços do estilo russo de política externa e defesa —invariáveis, fossem os ocupantes do Kremlin czares ou bolcheviques—, argumentava que a URSS seria uma potência vocacionalmente expansionista. Contrária aos interesses de Washington, a diplomacia de Moscou deveria ser "cerceada".

Nascia, portanto, a ideia de contenção —caberia construir um "cordão sanitário" em torno da URSS—, pilar da Doutrina Truman e de todas os governos da Casa Branca até o desmantelamento oficial da União Soviética na noite de natal de 1991.

Desde então, as doutrinas de política externa dos EUA oscilaram entre o apego às noções de "soft power" — a almejada influência que teve maior expressão nas presidências Bill Clinton e Barack Obama— e a concepção de "preemptive strikes" (os tais "ataques preventivos") que tanto marcaram a atuação externa durante a presidência George W. Bush.

Em meio a diferentes doutrinas, nas últimas duas décadas os EUA se lançaram a uma importante inflexão de política externa —diminuindo sua ênfase no Atlântico e a reorientando ao Pacífico.

Nos anos Obama, quando tal mudança ganhou maior força e detalhe, seus componentes conformaram o movimento conhecido como "Pivô para a Ásia". A Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês) era a principal vertente geoeconômica de tal política.

Durante a campanha que o elegeu ao posto de homem mais poderoso do planeta, Donald Trump desferiu inúmeras críticas às políticas externa e de defesa de Obama. Prometeu dela muito distanciar-se, e, claro, o abandono de toda a arquitetura minuciosamente desenhada no TPP será um sinal muito forte de que os rumos mudaram na bússola da nova Casa Branca.

Será, então, que já é possível distinguir os traços constitutivos do que será a "Doutrina Trump"?

Fala-se, com boa base, de que Trump implementará um postura isolacionista. Vale lembrar, contudo, que durante a gestão de Obama a política exterior dos EUA também contou com vários exercícios de introversão. Diminui a presença diplomático-militar de Washington —com menor engajamento em Europa, América Latina e Oriente Médio e supostamente uma maior atenção à Ásia.

A Doutrina Obama, é verdade, privilegiou, como método, a negociação sobre unilateralismo. Isso não muda o fato de que os EUA já se encontram há algum tempo mais voltados a si que a dilemas globais. Trata-se de uma tendência —que precede Donald Trump— segundo a qual Washington, como na Guerra Fria, concorda em atuar num mundo organizado em esferas de influência. Evita assim, sempre que possível, inserir-se em tabuleiros de risco elevado. Assim foi com Ucrânia e Líbia —e mesmo na Síria.

Trump demonstra desprezo pelo quadro de alianças estratégicas alinhavado por Washington nas últimas décadas —e também ojeriza à diplomacia multilateral. No âmbito do comércio, deseja abandonar "maus acordos" negociados por seus antecessores, confundindo na maioria dos casos déficit na balança comercial com "perdas econômicas" para os EUA.

Não percebe, assim, que os EUA mantêm déficits comerciais com o resto do mundo desde 1976 —muito antes, portanto, da emergência de supostos vilões como a China ou o Nafta.

A essa altura, poucos dias antes da posse, não se pode falar de uma nova "doutrina". A descoordenada visão de Trump sobre política externa continua mais assemelhada à superficialidade do marketing político do que base sólida sobre a qual deveria se sustentar uma renovada diplomacia para seu país.


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