Folha de S. Paulo


O mundo visto de Moscou parece sorrir para Putin

É muito aguardada em Moscou – e também nas capitais ocidentais– a entrevista coletiva que o Presidente Vladimir Putin tradicionalmente dá alguns dias antes do Natal.

Em 2015, o encontro do mandatário russo com jornalistas ficou marcado pela frase: "não queremos a volta da União Soviética, mas ninguém acredita em nós.

Vyacheslav Oseledko/AFP
Russian President Vladimir Putin speaks during a Commonwealth of Independent States (CIS) leaders summit at the Ala-Archa state residence in Bishkek on September 16, 2016. / AFP PHOTO / Vyacheslav OSELEDKO ORG XMIT: OVA2682
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, fala durante evento, em setembro

Putin indicava que todas as ações de EUA e Europa na última década, seja no caso da Ucrânia ou em outras áreas da antiga esfera soviética, orientaram-se a "conter" a Rússia.

Para o Kremlin, isso remete às famosas recomendações de George Frost Kennan, pai intelectual da "doutrina da contenção" que forneceu o substrato conceitual para o desenrolar da Guerra Fria.

Tenho para mim que a Rússia de hoje, ao contrário da URSS, não é expansionista. Ela não deseja onipresença geopolítica, mas manter sua atual integralidade territorial. Ambiciona, assim, segurança e previsibilidade em suas (imensas) fronteiras. E, mais ainda, quer respeito.

Isso explica muito do porquê os russos continuam a suportar Putin. O estilo do titular do Kremlin é visto por seus compatriotas como fundamental em evitar desmembramentos territorias na Chechênia e no Tatarstão. Enfrentou crises terroristas como a da escola em Beslan ou o sequestro do Teatro Dubrovka com sua impiedosa rudeza, o que lhe garantiu capital de apoio para reequilibrar sua insatisfatória liderança na modernização institucional do país.

Os russos também nutrem enorme admiração pelo papel de Putin na anexação da Crimeia –o que ajuda a amainar os duros efeitos na economia que os russos experimentam desde que o Ocidente lhes impôs sanções.

A população sabe que tem um presidente forte, mas não modernizador. E, em nome de algumas realizações que fazem bem à alma russa –como é reaver a Crimeia–, topam tolerar Putin. E o custo disso tudo para aos russos é um lento ritmo de modernização institucional rumo a uma sociedade mais aberta. Como é natural, isso alimenta uma certa resignação triste, que tanto marca o conhecido fatalismo russo.

Nos últimos três anos, tenho passado a cada fim de outono uma semana em Moscou dando aulas na RANEPA, a Academia Presidencial Russa de Economia e Administração Pública. Nesse período, nunca encontrei os russos tão entusiasmados quanto a seu futuro de médio prazo quanto agora. A razão da mudança de humor entre os russos tem nome: Donald Trump.

Os russos acompanharam a eleição americana com enorme interesse. Trump e Putin trocaram calorosos elogios durante a campanha. Muitos em Moscou acham que de agora em diante superarão esse estranhamento dos anos Obama, em que consideram terem as relações russo-americanas alcançado o pior patamar desde a Guerra Fria.

Aliás, os russos creditam a Obama e Hillary a vilanização de Putin. O Kremlin estaria por trás de ataques cibernéticos e outras ações de espionagem para buscar influir nas eleições presidenciais. E nesse aspecto, apesar da empatia Trump-Putin, há muitos russos de linha-dura que prometem não esquecer tão facilmente a maneira com que acham que os EUA trataram a imagem de seu país em 2016.

Ainda assim, os russos estão mais otimistas para suas relações com o Ocidente, embora talvez nada disso venha a se concretizar no curto prazo. É de todo improvável que Trump e Putin tenham uma reunião de cúpula no primeiro semestre de 2017.

Ao contrário de Putin, Trump é neófito em temas geopolíticos. Matérias quotidianas faz tempo para Putin – Síria, Estado Islâmico, Ucrânia, Otan até recentemente eram apenas "talking points" para Trump. O novo presidente americano terá de lidar com um acervo de políticas de antagonização a Moscou que se sedimentaram por anos no establishment de segurança e política externa de Washington. E ainda que EUA e Europa optem por alterar a aplicação de sanções à Rússia, isso não deve acontecer antes da eleição ao Kremlin marcada para março de 2018.

É por isso que Chris Weafer, o mais arguto analista ocidental residente em Moscou, sugere que o futuro da Rússia depende muito mais do que ela própria possa fazer em termos de reformas e da restauração da confiança de investidores. E não simplesmente aguardar que as mudanças venham do outro lado do mundo.

Quando se reunir na coletiva de imprensa às vésperas deste Natal, o presidente russo ponderará sobre um cenário que já conta com Brexit e Trump – e quem sabe possível vitória de François Fillon na França e derrota de Angela Merkel na Alemanha, além de eventuais novas fadigas na União Europeia.

Talvez esse conjunto de acontecimentos não inflexione o destino dos russos. Mas seguramente faz Putin abrir um largo sorriso.


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