Folha de S. Paulo


Eleição nos EUA deixa o mundo à beira de um ataque de nervos

Numa das muitas passagens excelentes do já clássico filme "Obrigado, Por Fumar", dirigido por Jason Reitman, pai (um habilidoso lobista da indústria de tabaco) e filho (prestes a adentrar a adolescência) fazem juntos a lição de casa.

O menino tem de escrever uma redação sobre o tema "por que o sistema político ("government") dos EUA é o melhor do mundo?".

O pai zomba do chauvinismo proposto para o texto e instrui o filho: "Não há o que possa definir o que seja o 'melhor', mas talvez o os EUA tenham o sistema político mais divertido ("entertaining") do mundo".

A presente eleição à Casa Branca é um perfeito exemplo de tal entretenimento.

Não apenas um dos contendores é uma celebridade bem versada no ambiente televisivo, como seu acervo de propostas esdrúxulas para a economia e a política externa apresentam a superficialidade de um reality show.

A ascensão de Donald Trump não é de interesse público, mas seguramente atrai o interesse do público.

Carlo Allegri /Reuters
Donald Trump, candidato republicano à Presidência dos EUA, em evento de campanha na Pensilvânia, nesta terça-feira
Donald Trump, candidato republicano à Presidência dos EUA, em evento de campanha na Pensilvânia

Em conversas com líderes de empresas multinacionais americanas, diplomatas do Departamento de Estado, ou mesmo jornalistas e professores americanos, sempre fiquei com a impressão de que todos consideram Trump apenas uma figura bizarra da fronteira "business-show business".

Peter Thiel, legendário investidor em empresas de tecnologia e um dos capitalistas pioneiros do Facebook, é um dos poucos líderes de negócios de expressão que endossa a candidatura Trump. E mesmo Thiel, um mago das finanças do Vale do Silício, tem dificuldades de decifrar o que uma administração Trump representaria para os EUA.

Numa conversa em Nova York com jornalistas na segunda-feira passada, Thiel sofisticou a já complexa teoria de que "devemos considerar Trump seriamente, mas não literalmente".

Banir a entrada de muçulmanos nos EUA? Não exatamente, somente "dar um tempo" para entender melhor a natureza de ameaças fragmentárias aos EUA.

Construir um muro na fronteira com o México? Talvez apenas uma alegoria da necessidade de uma triagem mais apurada do fluxo de imigrantes aos EUA.

Impor um tarifa unilateral de comércio a exportações chinesas aos EUA no patamar de 40%? Quem sabe seja apenas uma peça retórica voltada a obter melhores resultados em negociações com Pequim.

Globalismo, não. Americanismo sim? Ora, jamais um presidente republicano defenderia uma menor presença dos EUA no mundo.

A aposta é sempre a de que na hora "H", o eleitor americano vai dizer "bem, agora chega de diversão. Votemos na chata, previsível e mais-do-mesmo Hillary Clinton".

Mas o fato é que nesta terça (1º), uma pesquisa da rede americana ABC realizada em parceria com o "Washington Post" mostra Trump e Hillary virtualmente empatados.

Hillary se vê embaralhada na infindável trama de utilização de contas pessoais de email no trato de temas sensíveis e de assuntos de Estado. Na medida em que o FBI projeta maiores investigações no caso —a apenas poucos instantes do principal dia da eleição (8 de novembro)—, isso promete emoções fortes.

A reação dos mercados no mundo todo à pesquisa foi a pior possível. Mas nada se mostrou tão ilustrativo quanto uma matéria do "Financial Times" que aponta uma verdadeira corrida de investidores ao ativo ouro em busca de refúgio, caso Trump saia vencedor.

E mesmo se Hillary vencer por uma pequena margem, esta tenebrosa temporada política nos EUA pode não acabar tão cedo —com Trump buscando questionar judicialmente o resultado das urnas.

Neste 2016, já testemunhamos de queixo caído o "brexit" e a ocorrência de tantos outros "cisnes negros".

Nas próximas semanas, o flerte cada vez mais perigoso dos EUA com a dupla populismo-isolacionismo manterá EUA e mundo entretidos —e certamente à beira de um ataque de nervos.


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