Folha de S. Paulo


Quando voltar ao mundo, Brasil encontrará globalização 'fraturada'

Inerte em decorrência de suas paralisantes mazelas internas, o Brasil encontra-se algo desconectado das grandes tendências que hoje operam no cenário global.

Nosso melodrama político e a tragédia socioeconômica que dele se retroalimenta não apenas diminuíram o papel relativo do Brasil na definição da agenda internacional.

Criaram uma espécie de "cortina cronológica" —o Brasil opera em seu próprio (e lento) tempo; o mundo segue velocidade distinta.

Não aumentamos nossa importância no xadrez geopolítico. Nossa economia, de imenso potencial, permanece asfixiada por um modelo de baixa interação com o resto do mundo.

No campo dos valores, ou do "soft power", a deterioração de nosso quadro econômico social limita a atratividade moral e pragmática junto a países de menor desenvolvimento relativo.

Isso não será para sempre assim. Com a assunção de um governo minimamente funcional, o Brasil poderá ter sua conexão com o mundo restabelecida.

E, quando isso ocorrer, o país provavelmente encontrará uma globalização que não esperou por ele.

Ou, ainda mais desafiador, o Brasil se deparará com uma vertente da globalização (ocidental) seriamente fragmentada, e outra (liderada por China e outras potências asiáticas) em ritmo mais acelerado.

Há em curso no mundo contemporâneo uma crescente configuração em termos de poder, prosperidade e influência delineada —alternadamente em termos de concorrência e interdependência— pelo "G2": EUA e China.

Muitas críticas se fizeram corretamente ao Brasil por sua indisposição em buscar mais acordos comerciais e de investimento com os grandes mercados do Ocidente. Esse foi um traço marcante de nossa política externa econômica dos últimos 13 anos.

Em tais críticas reside (indireta e esperançosamente) a ideia de que, caso o Brasil se decida, as portas ainda estarão abertas para nós.

Esses últimos meses têm demonstrado, no entanto, que o próprio Ocidente está flertando cada vez mais com o isolacionismo. Não se trata bem de "nacionalismos", mas de "individualismos nacionais".

E não falo aqui apenas da retórica protecionista que impulsiona a candidatura Trump às alturas nos EUA. Ou mesmo das pesadas críticas que Hillary Clinton desfere aos supostos benefícios para os trabalhadores norte-americanos do que resultará do Tratado Transpacífico.

Aumentou demais em tempos recentes a resistência de países europeus a um mega-acordo com os EUA, a chamada Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês).

Na globalização "pré-Queda do Muro", uma maior integração global sinalizava para muitos os benefícios da otimização de competências e custos locais.

Isso muda drasticamente quando você agrega a esse quadro a China, que naturalmente absorveu e soube multiplicar exponencialmente oportunidades industrias quando se abriu ao mundo e o mundo a ela em fins dos anos 70.

Wolfgand Münchau escreve no Financial Times que a combinação de globalização profunda com avanço tecnológico desintegrou o que há um tempo, no Ocidente, poderia se chamar de "classe trabalhadora".

Hoje, mesmo aqueles países que ganharam enormemente com a escala global de suas exportações, como França e Alemanha, encontram ampla resistência em sua opinião pública para reformas modernizantes, como a do mercado de trabalho.

Münchau chama esse processo de "vingança dos perdedores da globalização", pois as democracias ocidentais não estariam lidando habilmente com os dilacerantes impactos dos choques econômicos advindos de fluxos financeiros agilíssimos e destruição criadora no campo do trabalho e da tecnologia.

Nesse último fim de semana, eclodiram muitas manifestações na Alemanha em contrário a um comércio global mais livre.

Justamente a Alemanha, que até 2009 era a maior exportadora do planeta e que deve tanto ao comércio como alavanca fundamental de seu reerguimento pós-Segunda Guerra.

E tudo isso enquanto Obama e Merkel traçavam, ao menos no papel, as grandes linhas de uma nova aliança econômica ocidental.

Se a globalização ocidental encontra-se em cheque, a outra, sinocêntrica, ao menos se move.

A China toca adiante o "clã" de instituições plurilaterais por ela liderado (Banco dos Brics, Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura, Fundo da Rota da Seda, etc.). Expande seu perfil como fonte de investimentos estrangeiros diretos e empréstimo governo a governo.

Em contraposição, está sempre à espreita o temor de que a própria saúde econômica chinesa e o desconhecido que habita seu setor financeiro podem levar a China a ter de concentrar-se em seus próprios problemas —e, portanto, projetar menor poder e influência para o resto do mundo.

O Brasil teve no passado recente boas oportunidades de conectar-se a um mundo, sobretudo em sua porção ocidental, mais simpático à interdependência.

Hoje, o Ocidente está mais traumatizado com a globalização, e negociações econômicas se dão num nível de abrangência e detalhe (muito além de comércio e investimento) em que o Brasil, honestamente, não está equipado a enfrentar.

Quando sair da caverna em que agora se encontra, perceberá que ficou bem mais difícil integrar-se a uma fraturada economia global.

O esforço agora terá de abranger muito mais do que diplomacia econômica e ganhar o mesmo grau de urgência que tantas outras adaptações competitivas a que o país tem de lançar-se.


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