Folha de S. Paulo


A globalização da Guerra ao Terror

Há alguns anos, Guerra do Terror era o nome que se dava a uma das modalidades belicistas da politica externa pós-11 de Setembro empreendidas pelo governo de Bush filho.

Tratava-se de uma mistura de coleta de informação global sobre terrorismo e, em termos de ação militar, comprometimento de tropas, com foco sobretudo no Afeganistão e no Iraque.

A contar dos atentados das últimas semanas –e em particular da bomba no avião russo e da última sexta-feira 13 em Paris, Guerra ao Terror mudou de sentido. Deixou de apenas povoar o campo semântico da política externa norte-americana –e literalmente globalizou-se.

Não somente pela expansão do escopo geográfico do terrorismo orientado a civis, mas também pelo número de potências que passam assumir a ponta do combate a esse flagelo.

Uma coisa é a Rússia lidar com ação de tchetchenos no próprio território russo, como nos tenebrosos sequestros no teatro Dubrovka (2002) ou na escola em Beslan (2004) em que centenas de crianças perderam a vida. Ou ainda realizar incursões em seu "near abroad", sua imediata projeção sobre países que há um tempo formavam a União Soviética.

Outra é a Rússia engajada até os dentes em ações que podem direcionar-se não somente ao óbvio objetivo de Raqqa, na Síria, suposto ninho da serpente, mas também a Iraque, Líbia, Iêmen, etc.

Alexei Nikolskyi/Reuters
O presidente Vladimir Putin e seu ministro da Defesa, Serguei Shoigu (esq.), falam sobre ataques à Síria
O presidente Vladimir Putin e seu ministro da Defesa, Serguei Shoigu (esq.), falam sobre ataques à Síria

O Kremlin, ao finalmente reconhecer que o avião da Metrojet desintegrou-se no ar por obra de uma bomba, deixou claro ontem que não reconhecerá limites geográficos para caçar os responsáveis, "onde quer que se escondam".

O mesmo pode ser dito em relação à França. O apoio da população francesa a ações militares no exterior, com ou sem anuência do Conselho de Segurança da ONU, com ou sem coordenação com demais potências, é marcante no rescaldo do terrível banho de sangue dos últimos dias.

PACIFISMO TOLO

Em 2003, Dominique de Villepin, à época chanceler francês, pronunciou um célebre discurso no Conselho de Seguraça da ONU em contrário a ações no Iraque. Suas palavras guindaram-no à condição de "superestrela da política externa europeia", supostamente erigida a partir de uma visão essencialmente idealista.

Seu discurso, que na ocasião suscitou rara rodada de aplausos no vetusto Conselho de Segurança, hoje soaria como pacifismo tolo aos ouvidos franceses e de muitos outros europeus.

Também em 2003, um dos mais respeitados analistas internacionais, o norte-americano Robert Kagan, apontou em seu importante ensaio "Do Poder e do Paraíso" um abismo em termos de visão de mundo entre EUA e Europa.

Os EUA viam-se às voltas com um mundo cruel a que cumpriria responder com poder realista ("power politics"). A Europa era um oásis de racionalidade humana, diplomacia de princípios e construção kantiana do projeto de paz perpétua.

Ainda não eclodira o terror em Madri (2004), Londres (2005) e sobretudo a virulência deste ano em Paris, com os ataques de janeiro e os que agora levaram à França ao estado de emergência.

O apetite europeu por uma guerra global ao terror foi bem exemplificado pelo filósofo francês Bernard Henri-Lévy em entrevista em inglês à rede CNN durante o fim de semana: "No boots on the ground mean blood on the ground". É dizer, sem tropas nos locais onde o terrorismo é gestado, teremos sangue no solo do Ocidente.

OLIMPÍADA DO RIO

Essa globalização da Guerra ao Terror tem muitas e sensibilíssimas implicações para o Brasil. Poucos meses separam o Rio de Janeiro de sediar o maior evento esportivo do planeta.

Não bastassem a recessão brasileira e a perda de brilho internacional que a imagem do país vem sofrendo, pela disfuncionalidade de sua política e pelos escândalos de corrupção, a atmosfera mundial eletrificou-se com uma pronunciada tensão.

A abominável combinação terror e Olimpíada não é inédita. Isso demandará grande habilidade, planejamento e coordenação por parte das autoridades brasileiras. Exigirá também intensa e urgente cooperação com órgãos de inteligência e segurança de outros países.

O Brasil tem imensas e vulneráveis fronteiras. Nosso controle de passaportes (sobretudo os brasileiros) nos aeroportos não é dos mais rigorosos. O comércio de armas no Brasil corre solto.

Nossas Forças Armadas têm bom material humano, sobretudo no quadro de oficiais, mas equipamentos militares obsoletos ou insuficientes. E nossos contingentes de segurança pública tem dificuldades de coibir até mesmo arrastões nas praias cariocas.

A presidente Dilma Rousseff disse, durante a reunião do G20 na Turquia, que o Brasil não está completamente protegido do terrorismo. Afirmou, no entanto, não estar muito preocupada com a possibilidade de atos terroristas no Brasil por "estarmos muito longe do epicentro dos atentados mais recentes".

O fato é que o terror e a guerra que o combate globalizaram-se. Este, a um tempo, é pesadelo e desafio para todos. E –sobretudo no contexto de uma Olimpíada que se avizinha– também para o Brasil.


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