Folha de S. Paulo


O Brasil chega ao fim do século 20

A angustiante crise a enredar o Brasil, que tem na perda do grau de investimento um de seus muitos símbolos, alimenta-se de diferentes fontes. Há obviamente as causas mais imediatas da derrocada –má administração macroeconômica, deterioração das contas públicas, déficit de governança e estratégia, escândalos político-corporativos. Mas a crise exprime sobretudo um choque de realidade mais profundo.

Confrontado com uma robusta onda adversa que governo e parte significativa de sindicatos trabalhistas e empresários ajudou a precipitar, o Brasil tem na perda do selo de bom pagador o símbolo de uma dimensão maior. Reflete o malogro das várias apostas que o país fez em conceitos típicos do século 20.

O século passado foi imantado por grandes sistemas ideológicos. No plano interno de cada país, o campo econômico demarcava a cristalina divisão entre o coletivismo dirigista e ensaios laboratoriais de Estado mínimo.

No político, o domínio socialista, de caráter assembleísta ou ditatorial, e, do outro lado, democracias representativas alicerçadas por mecanismos de mercado. Tais visões de mundo, projetadas em termos de aliança geopolítica, constituíram o jogo básico da confrontação bipolar –a própria Guerra Fria.

Nesse contexto, mais do que um período "cronológico", o século 20 foi um "ar do tempo". Nele, noções como eficiência, competência, moral, estratégia, papel da mídia, Estado, sociedade civil tinham sua definição eclipsada pelo binário embate ideológico.

Mais ainda, o século 20 não foi apenas palco da velha –e anacrônica– distinção entre uma ética do capital e outra do trabalho, mas também, no plano das relações internacionais, da segmentação "Norte-Sul" a parametrizar objetivos de política externa e contornos de política industrial.

É filha do século 20 a ideia de diplomacia "Sul-Sul" como contraponto necessário ao "condomínio de poder do Norte", não apenas no intercâmbio entre países, mas também na forma da costura de entendimentos em palcos multilaterais como ONU, FMI e Banco Mundial.

Em grande medida, neste período 2003-2015 o Brasil optou por mergulhar retroativa e profundamente no século 20. Assistimos à construção de políticas a partir do BNDES e do papel das estatais, típica da proeminência das teses de "desenvolvimento endógeno", "autônomo" –referencial do "Brasil potência".

Tudo em correspondência com diretrizes econômicas adotadas sobretudo durante o regime militar (1964-85) e que buscaram aplicar um "facelift" à "teoria da dependência", a que caberia combater com uma nova fase "nacional-desenvolvimentista".

Na política externa de viés terceiro-mundista –também de claro parentesco com a diplomacia do período militar– demonstramos um marcado desapego em alinhavar acordos de comércio e investimento com os principais mercados do planeta. E, ainda mais impressionante, fomos capazes de nos orgulhar disso.

Em seu périplo pela Argentina na semana passada, Lula saudou a memória de Néstor Kirchner ressaltando que ambos os líderes do Cone Sul deram-se as mãos para "enterrar a Alca". Ora, não há nada mais "século 20" do que entoar a solidariedade latino-americana, em especial se edulcorada por alianças de esquerda, contra "interesses da potência hegemônica".

É também novecentista nossa ênfase na falsa dicotomia objetivo social x interesse do mercado. A realidade é dura. No mundo do trabalho e do capital, muito do que no século 20 celebrávamos como "conquistas", "direitos", "fatias de mercado" permanentes (como se a lógica dinâmica da competitividade permitisse tais coisas) é drasticamente questionado num contexto em que China e Índia integram o mapa geoeconômico.

Não faz muito tempo, estudos de economia internacional comparada se referiam ao Brasil como "maior parque industrial do hemisfério Sul", ou a São Paulo como "principal cidade industrial da Suécia". No século 21, categorias como "conquistas", "direitos" e "fatias de mercado" fazem sentido apenas como recompensas a resultar do jogo jogado todos os dias.

Parece brincadeira, mas partidos políticos e meios acadêmicos no Brasil continuam a empregar em pleno século 21 vocabulário como "burguesia", "classe dominante", "operariado", "divisão internacional do trabalho".

Embora todos esses anacronismos no plano das ideias e das politicas públicas estejam se fossilizando rapidamente, eles não desaparecerão de forma silenciosa. Esta "última milha" que o Brasil tem de percorrer para deixar o século 20 para trás comportará embates políticos bem ruidosos. Eles não se darão de acordo com imaginárias linhas divisórias entre esquerda e direita.

A disputa aqui é entre a economia política cartorial (compadrios pilotados por coronéis patrimonialistas ou pela elite lulopetista) e uma sociedade aberta de capitalismo concorrencial, cuja liderança política ainda haverá de consolidar-se. É desse embate que o país depende para, finalmente, adentrar o século 21 como revigorada fênix.


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