Folha de S. Paulo


O dragão de três cabeças

Todos nos acostumamos a uma narrativa neste último quarto de século que retrata a China como um "dragão de uma cabeça". Incipiente como fonte de capital para investimento em terceiros países ou mantendo um perfil baixo nas grandes questões geopolíticas, a grande relevância para o exterior se dava no campo comercial-industrial.

Em suas relações com o resto do mundo, a China mostrou-se sobretudo como um gigantesco polo voltado a exportações. A China aproveitou a janela de oportunidade oferecida pela disputa bipolar EUA X URSS para obter benefícios específicos nas relações econômicas com o Ocidente. Reformou-se internamente de modo a fazer frente a uma estratégia de promoção de exportações que, desde 2013, tornou-a a maior nação comerciante do planeta.

Desde que Xi Jinping chegou ao patamar máximo do poder chinês em 2013, a hipótese era que o dragão passaria por uma marcada metamorfose. Por um lado, um maior protagonismo chinês na definição da ordem internacional. Isso sem dúvida vem ocorrendo, sobretudo no campo da governança econômica. A família de novas instituições plurilaterais liderada por Pequim, de que fazem parte o banco dos Brics e o banco voltado à infraestrutura na Ásia (respectivamente, NDB e AIIB nas siglas em inglês), está aí para provar.

A modernização das Forças Armadas chinesas, em especial no que toca ao grau de tecnologia avançada presente nos armamentos, também reforça a ideia de que a China igualmente espera ser reconhecida como membro da primeira divisão do poder duro (hard power) global.

Os chineses estão trabalhando para que a visita de Estado de Xi Jinping aos EUA neste mês de setembro ofereça vários símbolos de um tal reconhecimento –de que Washington terá em Pequim uma contraparte interessada em qualquer assunto global, e não mais apenas em ser tratada como potência "regional".

Por outro lado, no domínio das estratégias econômicas, a China faria a transição do modelo "industrial-exportador" para uma nova realidade, a combinar ênfase no mercado interno como motor do crescimento, maior valor agregado à produção manufatureira e diáspora das empresas chinesas em busca de estabelecer operações em países com menor custo relativo de produção.

O monstro de uma cabeça (a da potência exportadora) evoluiria para tornar-se um dragão de duas cabeças (a da projeção geopolítica e a da máquina de investimentos no exterior). Falamos aqui de um forte ator geopolítico cuja economia, de produção mais espraiada em LCCs (sigla em inglês para países de baixo custo), se alimentaria agora sobretudo da demanda interna. O dragão perderia, assim, a cabeça exportadora.

A verdadeira narrativa, contudo, é mais complexa. A China acrescenta músculos militares e também conta simultaneamente com maiores estímulos do mercado interno e presença corporativa crescente no mundo.

No entanto, suas cadeias internas de valor (os chamados "clusters") estão menos dependentes de insumos externos –portanto, mais e mais fases do processo produtivo dão-se no próprio território chinês. É isso que mostra um estudo recente de Herald van der Linde, que chefia divisão de estratégia asiática do HSBC. Parte de sua análise foi publicada recentemente no "Financial Times".

Em 1995, cerca de 55% dos componentes utilizados nas exportações eram importados antes de sua "montagem" na China. Hoje, esse percentual caiu para 35%. É como se, ao contrário dos países latino-americanos e em semelhança à trajetória da Coreia do Sul, a China tivesse adotado estratégias de substituição de importações não para o suprimento do mercado interno, mas para a promoção de exportações.

É por isso que muitos observadores aqui na China argumentam que a recente onda de desvalorização da moeda chinesa representa acontecimento de importância muito maior para a economia global do que a gangorra na Bolsa de Xangai. Ademais, é robusta a lista de benefícios fiscais e creditícios concedidos pelo governo chinês para as empresas que desejam exportar.

Nesse quadro, a China estaria logrando uma tripla proeminência: mantém sua competitividade exportadora, incrementa sua presença no exterior por meio de investimentos diretos e goza do elevado status de superpotência política. Ou seja, um "dragão de três cabeças".

A grande questão é: será que essa renovada capacidade chinesa de exportar –reforçada por câmbio mais depreciado e o dinamismo das cadeias produtivas internas– encontrará mercados no exterior dispostos e capazes de demandar tudo que a China tem a oferecer? A demanda global desaquecida parece ser a principal ameaça de vida curta para o dragão de três cabeças.


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