Folha de S. Paulo


China, turbulência econômica e parada militar

Estou na China numa viagem de três semanas repletas de debates sobre Brics, mercados emergentes e, especialmente, os enormes desafios que se apresentam a Brasil e China.

Antes de chegar aqui, meus colegas ocidentais pediram-me para compartilhar as impressões de como era estar no "coração da crise econômica".

No contexto da propalada turbulência da Bolsa de Xangai, o tombo vertiginoso dos índices acionários, que a própria mídia chinesa chama de "Segunda-Feira Negra" (o último 24 de agosto), queriam saber qual é o clima no "olho do furacão" –como os locais estavam lidando com a "grande queda da China".

Brincando com as palavras "fall" (queda) e "wall" (muralha), foi assim que a "Economist" retratou em sua mais recente capa as agruras da economia chinesa.

Os altos escalões no governo e em empresas chinesas desconversam sobre a gravidade dos problemas que afetam tanto o setor financeiro quanto a economia real.

Exibem um excesso de autoconfiança quanto à habilidade de lidar com a crise e a abundância de ferramentas normativas e de liquidez.

Argumentam que a imprensa ocidental está usando o mesmo "template" para interpretar a queda do Lemann Brothers em 2008, a crise de dívidas europeias em 2011 e a presente instabilidade na China.

E mesmo a mídia chinesa está pagando o pato.

Cerca de 200 jornalistas foram punidos em seus veículos por disseminar "rumores infundados" sobre a saúde da economia.

Um deles, o repórter Wang Xialou, da conhecida revista econômica chinesa "Caijing", foi preso e "confessou" numa audiência transmitida ao vivo pela CCTV ter "fabricado e espalhado boatos".

O aperto da intimidação à cobertura jornalística da turbulência e a maneira "dirigista" com que autoridades do mercado de capitais impõem restrições a livre movimento de compra e venda pouco contribuem para dirimir dúvidas e receios.

Se, por um lado, cada vez mais os chineses adotam a retórica de mercados mais avançados e suas noções de "compliance", "relações com investidores" e respeito a "direitos de acionistas minoritários", por outro continuam a fazer sentir a mão pesada do regime.

Para os chineses, no entanto, o grande tema do momento não é a sua suposta crise econômica. Nove em cada dez pessoas não têm outro assunto a não ser as celebrações dos 70 anos do fim das hostilidades da Segunda Guerra Mundial na China.

Os chineses não podiam ser mais diretos. Chamam o 3 de Setembro de "Dia da Vitória da Guerra Antijaponesa do Povo Chinês", como ressaltou o próprio embaixador em Brasília, Li Jinzhang, em artigo publicado ontem nesta Folha.

O presidente Xi Jinping atribui enorme importância a essa data. Planeja para tanto a mais portentosa parada militar já vista na praça da Paz Celestial.

A mais imediata interpretação dessa demonstração de força e nacionalismo reforça a ideia de que a China atravessa uma dupla metamorfose.

Numa dimensão, sacoleja com um cenário internacional mais adverso a suas exportações e com um público interno abraçado ao modelo de poupança e investimento elevados e baixo consumo.

E essa dinâmica é complexificada por uma economia que, para continuar a evoluir, tem de se tornar mais sofisticada e, portanto, menos "dirigível".

Noutra, ressentimentos históricos que China e vizinhos nutrem mutuamente, ou desconfianças que Pequim inspira em Washington ou em Nova Déli, são agora exacerbados pelo crescente status chinês como superpotência do século 21.

A China claramente não se contenta mais com proeminência apenas no campo econômico-comercial. Deseja ser reconhecida –e temida– por seu poder duro.

No limite, as incertezas quanto ao futuro da economia chinesa são café pequeno se comparadas ao potencial desestabilizador de uma ascensão atabalhoada da China como protagonista político-militar.


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