Folha de S. Paulo


Incertezas chinesas e seu impacto no Brasil

Mesmo os mais argutos observadores da cena chinesa ainda não chegaram a conclusão definitiva sobre o que o "minicrash" da Bolsa de Valores na semana passada significa para o futuro da economia global e da própria China.

Em 2014, Xangai teve a melhor performance entre as maiores Bolsas mundiais. Acumulou valorização anual de 52%. Nas últimas semanas, perdeu um terço de seu valor, o equivalente a US$ 3 trilhões.

Para Trevor Greetham, chefe da Royal London, uma gestora de ativos, o montante significa uma das mais rápidas destruições de riqueza de que se tem notícia. Nie Riming, pesquisador do SIFL –Instituto de Finanças e Direito de Xangai, entende que, pela primeira vez desde a dramática ascensão da economia com as reformas de Deng Xiaoping a partir de 1978, a Bolsa chinesa verdadeiramente se descolou da realidade.

Há, no entanto, os que veem a China municiada de poderosos instrumentos para combater qualquer desafio de liquidez. O país possui US$ 4 trilhões em reservas cambiais. É a maior nação-comerciante do planeta. Seu crescimento interno, embora percentualmente menos impressionante do que há uma década, equivale a um terço da expansão do PIB mundial. Além disso, hoje o crescimento chinês se dá sobre uma base muito mais robusta.

Quinze anos atrás, quando a China tinha um PIB semelhante ao da Itália (cerca de US$ 2 trilhões) e sua economia aumentava 12% ao ano, a contribuição incremental chinesa à formação da demanda global era de US$ 240 bilhões. Agora, ao crescer 7% sobre um PIB de US$ 10 trilhões, a China injeta US$ 700 bilhões no produto mundial –impacto, portanto, três vezes maior do que há apenas dez anos.

No início de 2011, quando Christian Déséglise e eu fundamos o BRICLab, Centro sobre Brics na Universidade Columbia, a economia chinesa era do tamanho da soma do PIB dos demais membros do grupo. Hoje, o produto chinês é 60% maior que o de todos os outros Brics juntos.

Por outro ângulo, muitos analistas temem o sentido de "infalibilidade" que parece governar as autoridades econômicas na China e o ar de "superioridade" com que enxergam seu próprio setor financeiro.

Tal soberba só teria aumentado pela maneira incólume com que a China atravessou a crise desencadeada no mercado subprime em 2008, bem como a crise das dívidas soberanas europeias de 2011.

Como resultado, os líderes chineses teriam preferido fazer vista grossa ao elevado grau de informalidade de seu setor bancário-creditício. Trata-se do famoso "shadow banking", que irrigou pessoas físicas com os recursos necessários para a "roleta" no mercado de ações.

Da perspectiva dos mais céticos, essa brusca correção no preço das ações realçaria as muitas inconsistências do modelo econômico chinês. O valor dos imóveis estaria sobrevalorizado. O país continua a poupar e investir demais e a consumir de menos. A China concedeu muitos empréstimos do tipo "país-a-país" por critérios não financeiros, mas geopolíticos, a clientes como Venezuela e Equador.

Tais incertezas na China afetam o Brasil em algumas frentes, embora no curto prazo os impactos da crise acionária chinesa em nosso país sejam pequenos.

Uma dessas frentes é aquela que podemos chamar de "superficial". É curioso perceber como se convencionou atrelar o vagão brasileiro à locomotiva chinesa. Tornou-se lugar-comum entre investidores menos informados em Londres ou Nova York dizer que, "se a China fica resfriada, o Brasil pega uma pneumonia". É como se o Brasil fosse estritamente dependente de seu comércio com a China para alcançar um lugar ao sol. Não é bem assim.

Sofremos nesses últimos anos muito menos com oscilações na economia chinesa e mais por não termos aproveitado a bonança internacional das commodities para ajudar a empreender as indispensáveis reformas estruturais internas. Faltou utilizar o arranque das commodities para ajudar a sofisticar nossa economia e inflexioná-la rumo a mais valor agregado, sobretudo no setor industrial.

Daí não surpreende perdermos 22 posições no ranking de complexidade econômica elaborado pelos economistas Ricardo Hausmann (Harvard) e Cesar Hidalgo (MIT), como mostrou Érica Fraga nesta Folha.

Para o bem e para o mal, o Brasil é um das economias mais fechadas do mundo –e isso se reflete em sua corrente de comércio exterior, sobretudo na tibieza de nossas exportações. Elas gravitam em apenas cerca de 10% do PIB brasileiro. E, por seu turno, a China representa um quinto de tudo o que exportamos.

Nessa dimensão, as exportações brasileiras são muito menos afetadas pela saúde do mercado acionário de Xangai e mais imediatamente pelo baixo preço internacional das commodities minerais –resultante sobretudo do aumento no número de fornecedores e das crescentes remessas de matérias-primas à China. A Austrália, por exemplo, é responsável por praticamente metade da oferta global de minério de ferro, e a China compra 65% dela, num total que em 2015 deve chegar a 1 bilhão de toneladas.

Talvez o maior efeito da incerteza chinesa seja um menor ímpeto no papel que o país pode desempenhar como investidor no exterior. Os estrategistas chineses teriam de prestar mais atenção a seus desafios internos, diminuindo o ritmo da presença em terceiros países como investidores em infraestrutura.

Embora a China ainda não figure entre os cinco países que mais investem no Brasil, esse quadro tinha tudo para evoluir –a julgar pelas intenções vocalizadas durante a recente visita do premiê Li Keqiang ao Brasil.

Caso os sempre prudentes chineses pisem no freio de seus investimentos no exterior, os tão sonhados aportes para projetos de infraestrutura no Brasil ficarão mais distantes.


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