Folha de S. Paulo


O Brasil está puxando seu próprio tapete

Como aquele piloto que se trancafiou na cabine de comando e "suicidou" com ele todos os passageiros, a casta política brasileira dá a impressão de que pode levar o país –já perigosamente instável e avariado– ao desastre final. Uma espécie de fascínio irresponsável pelo abismo parece comandar as ações dos agentes políticos, que se movem com antolhos: nada veem além de seus interesses na disputa por posições no sistema de poder, esse mercadão rico e corrupto em que se transformou a vida institucional brasileira.

Situação e oposição competem em arremesso de gasolina na fogueira, apesar de Eduardo Cunha, o pirotécnico-mor, ter guardado provisoriamente o isqueiro ao amaciar seu discurso na questão da derrubada dos vetos.

O governo é, sem dúvida, o maior responsável por estarmos onde estamos. Não só pela chocante imperícia da presidente em matéria de economia (e tudo o mais), mas por sua filiação a um projeto de hegemonia e apropriação do Estado que implodiu de maneira espetacular.

É fato que a passagem do PT pelo poder deixou conquistas importantes –e seria bom preservá-las. O próprio governo, entretanto, ajuda a miná-las. Todos sabiam antes da eleição que as contas públicas desmoranavam e que um ajuste seria inevitável.

A campanha de Dilma, com o inestimável concurso de seu Doutor Silvana marqueteiro, mentiu descaradamente sobre o assunto. Na base do vale-tudo chegou a uma vitória apertadíssima. Triunfo obtido nas urnas, incontestável. Mas que começou a ganhar feições de derrota tão logo a vaca tossiu: nomeou-se para a Fazenda um gestor do mercado financeiro, iniciou-se a elevação dos juros e os primeiros anúncios de cortes em benefícios socias se tornaram públicos.

Em meio à confusão causada pela ofensiva da Lava Jato contra os esquemas de corrupção organizados pelo PT e seus aliados (com destaque para o PP), a oposição encontrou clima propício para a ideia de afastar a presidente. E os ventos dos protestos de rua da direita emergente ajudaram a desfraldar a bandeira do impeachment.

Há uma infinidade de motivos para lamentar a presença de Dilma Rousseff na Presidência da República, mas não há, por ora, nenhum que se imponha categoricamente como justificativa para o processo de afastamento, por mais político e menos jurídico que seja em sua essência. A legislação a respeito, como se sabe, é ampla e falha.

Não é preciso inteligência privilegiada para supor que Dilma sabia dos desvios na Petrobras; tampouco para imaginar, por exemplo, que Aécio Neves dificilmente resistiria a um exame minucioso das contas de suas campanhas, quiçá de seu governo. Supor, contudo, não basta.

É preciso ao menos um pretexto constitucional. O mais verossímel que se encontrou foram as pedaladas fiscais nas contas do mandato anterior, que o TCU, ao que se sabe, irá gongar. Mas ainda não é muito bom. Para impor-se precisaria ser fortalecido por apoio político mais amplo e inequívoco. Não parece, por ora, ser o caso. Não faz muito, o banqueiro Roberto Setúbal declarou não ver motivos para impeachment. Considerou o expediente das pedaladas grave e passível de punição, mas seria desproporcional puni-lo com a retirada da presidente do Planalto. Soaria como "artificialismo", disse.

Mais recentemente, o governador Geraldo Alckmin –também em seu proveito, claro– repetiu a cautela do banqueiro paulista. Pedaladas não seriam um fato robusto e poderiam provocar insegurança generalizada, já que esse coelho não saiu da cartola só no governo Dilma –é mágica conhecida e praticada por muitos. Se for motivo para impeachment haveria, segundo Alckmin, risco para a democracia, pois nenhum governo terá mais segurança jurídica de que terminará o mandato".

Enquanto setores de um Congresso liderado por suspeitos de corrupção se entregaram a maquinações sobre melhor forma de agir no tapetão, a oposição ao ajuste (que já não corresponde às fronteiras dos partidos e se dissemina pela "base" governista) só fez aumentar. A difusão do termo "pauta-bomba", metáfora de fundo terrorista, diz bastante sobre o tipo de atuação de lideranças e bancadas parlamentares.

Em português chulo, porém claro, ligou-se um "foda-se" no parlamento, enquanto o Executivo não se furtou a colaborar com uma sequência inacreditável de erros.

É legítimo que a oposição queira criar dificuldades para a situação e é parte do jogo que a discussão sobre impeachment ou renúncia esteja e continue na mesa. Outra coisa é apostar no quanto pior melhor.

Com o perdão da ingenuidade do articulista que vos fala, há alguma coisa acima das desavenças e ódios que reverberam em Brasília, nas ruas e nas redes sociais. Não é preciso nenhum pingo de nacionalismo, tampouco apagar as contradições entre classes sociais e correntes ideológicas para reconhecer um solo comum de interesses –aquilo que, afinal, nos faz um país. E é claramente do interesse do país que o Estado e a economia não se afundem ainda mais numa crise fiscal e recessiva, com crescente perda de credibilidade institucional e acirramento de sectarismos.

Quem olha com um mínimo de distanciamento vê o Brasil puxando seu próprio tapete.

A realidade é que a aprovação das medidas fiscais tornou-se, no curto prazo, uma espécie de é isso ou é isso. É preciso dar esse passo básico, emergencial, que qualquer governo teria que dar. E seguir com os embates políticos sem complacência, mas também sem sabotagens, reféns, balas e bombas perdidas.

A inflexão na retórica em torno da decisão sobre os vetos presidenciais seria apenas um estratagema de ocasião? Todo ceticismo no caso é pouco, mas esperemos que seja um sinal de mudança da rota suicida.


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