Folha de S. Paulo


O golpe do golpe e outros golpes

Na sequência das denúncias sobre a distribuição de dinheiro para políticos e partidos da base do governo Lula, no episódio que ficou conhecido como "mensalão", o PT e seus aliados passaram a alardear a versão de que estaria em curso uma tentativa de "golpe" no país, orquestrada pela direita com apoio da mídia, dos setores neoliberais e do imperialismo norte-americano. A sublevação reacionária, como se sabe, não aconteceu. Não houve pedido de impeachment, Lula foi reeleito e fez sua sucessora, que, por sua vez, chegou ao segundo mandato.

Agora, mais uma vez, o petismo volta a alardear a suposta ameaça golpista, desta vez diante das evidências de que setores do partido estão no centro de um gigantesco esquema de corrupção na maior empresa pública do país. Num contorcionismo histórico admirável, o agitprop do partido nos leva de volta ao mundo da Guerra Fria, da URSS, da revolução Cubana, da UDN, das Ligas Camponesas, e recoloca em cena as circunstâncias que culminaram com a derrubada de João Goulart pelos militares em 1964.

É ótimo, ainda mais tratando-se de uma jovem democracia latino-americana, que se reitere a defesa dos preceitos constitucionais e da normalidade institucional. Ocorre que, apesar da maré neoconservadora e de manifestações estúpidas antidemocráticas, não há condições objetivas para uma intervenção golpista no Brasil. Não há sustentação social, militar e política para tanto, tampouco perspectivas de apoio internacional para uma aventura desse tipo.

O intuito dessa fantasmagoria paranoica não é outro senão desviar as atenções da crise por que passam o PT e o governo federal. O recurso de acenar com grandes ameaças "ex machina" em momentos de dificuldade de governantes é tão velho quanto a política.

A estratégia da campanha contra o "golpismo" é terraplanar o território, eliminar os relevos e estabelecer um ambiente de discussão política primário, perfeitamente maniqueísta, em que tudo se resume a dois lados, o bem contra o mal, a esquerda democrática contra a direita ditatorial, os defensores da Petrobras contra os vendilhões.

Postas as coisas dessa maneira, não há o que discutir. Os indignados com a corrupção e os insatisfeitos com o PT e o governo já perderam. Na melhor hipótese fazem o jogo da direita autoritária.

Esse tipo de interdição do debate faz lembrar o período da ditadura militar, quando a esquerda tradicional rejeitava as críticas que se faziam aos países comunistas. Denunciar a sistemática perseguição a intelectuais e homossexuais, por exemplo, em Cuba, na China e na URSS, era uma atitude equivocada. Tratava-se, segundo os cardeais do PCB, PC do B e congêneres, de uma questão "secundária", a ser silenciada. Levantá-la era fazer o jogo do imperialismo e da direita, ou seja, dos militares anticomunistas.

No mesmo sentido, trata-se agora de negar evidências e recalcar as críticas aos rumos da esquerda, que tem hoje no PT seu partido hegemônico -como foi, em outros tempos, o "partidão".

À época de sua fundação, a sigla de Lula, que nasceu de uma associação do sindicalismo paulista com a Igreja Católica progressista, intelectuais e grupos socialistas, apresentava-se como representante de uma "esquerda moderna", em ruptura com o stalinismo e o populismo. Hoje, as questões da agenda contemporânea deram lugar uma "frente ampla" que vai do esportivo stalinismo-rebelismo tendência agrobusiness do PC do B ao altar da feliz nação cujo Deus é o senhor.

Não desconheço, obviamente, a onda conservadora em curso –da qual Eduardo Cunha é o showman e animador pastoral. Mas o problema ceramente não reside na ameaça de um golpe militar com apoio da UDN, para derrubar a herança trabalhista de Vargas e a "ameaça comunista". Isso aconteceu há 50 anos.

A questão é saber como -e se– o governo desastrado de Dilma Rousseff vai reaver um mínimo de autoridade e bom senso para reorganizar o pacto político, restabelecer a confiança na economia e encontrar uma porta de saída pelo centro, que minimize os danos sobre os progressos recentes do país. Para isso, como escreveu o jornalista João Carlos de Oliveira (cujos argumentos aqui em parte repito) num post no Facebook, o PT precisa voltar a fazer política e interromper sua pregação evangélica em defesa do indefensável.


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